Eu
disse aqui que quando iniciei este blog, eu poderia usá-lo como uma espécie de diário, não um diário que tratasse de meu dia-a-dia pessoal, mas de minha percepção a respeito dos acontecimentos do mundo. Disse ainda que não saberia que contribuição eu poderia dar com um blog desse tipo, porque não sou famoso, não tenho especialização em nada e nem tenho autoridade alguma sobre nenhum tipo de assunto que por acaso eu viesse a querer comentar.
E depois, a Internet está atulhada de palpiteiros de todos os tipos abordando milhares de aspectos sobre todo tipo de assunto, que a grande maioria não domina minimamente. Por que me juntar ao grupo de palpiteiros, se não aprovo muito esse comportamento?
Mas, gostemos ou não dos palpiteiros, amadores em geral que usam da liberdade que a Internet proporciona para falarem o que pensam aberta e livremente, eles estão aí para ficar, e dentre eles estamos nós, mais ou menos afundados nessa onda de comentários infinitos, contraditórios e inconclusivos.
Relembro que quando eu disse o que disse no início deste blog, em 2004, ainda não havia a febre do Facebook. Aliás, em 2004 nem o Orkut ainda existia. Quer dizer, o Orkut estava apenas começando, e hoje ele nem existe mais.
A Internet permitiu que bilhões de anônimos passassem a ter voz, e isso é bom, ainda que quase sempre as vozes que se exprimem não são assim de tão boa qualidade como poderiam ser.
Agora, é evidente que bilhões de pessoas sejam muito diferentes umas das outras. Portanto, elas têm opiniões diferentes, e as expressam na Internet de maneira espalhafatosa e gritante. Mas as diferenças das pessoas não são uma coisa nova e nem precisa da Internet para se manifestar.
Hoje, temos no Facebook as grandes redes de mídia noticiando quase tudo o tempo todo, e assim que uma notícia é postada, imediatamente há uma busca eufórica para se curtir, comentar e, curiosamente, ler-se os comentários, curtindo-os ou não, e por vezes respondendo-os, debatendo-se através de dezenas, centenas de comentários curtos e inconclusivos, agressivos, espasmódicos. A coisa é tão viciante que a participação dos leitores de uma dada postagem acaba sendo tão ou mais interessante que a própria postagem, gerando um mundo de novas percepções, com a iluminação de detalhes curiosos ou sórdidos, apontamento de lapsos intencionais ou não, brigas de grupos que concordam ou discordam daquilo que é postado, e então percebo que aquilo que disse a dez anos atrás não faz mais sentido, porque todo mundo pode e dá seu palpite, sua contribuição a qualquer assunto que queiram dar, sem nenhum escrúpulo quando a serem autoridades ou leigos no assunto, ou se serão criticados ou apoiados em seus comentários por quem quer que seja.
Eu continuo achando que não tenho nada com que contribuir com o entendimento do que acorre com o mundo? Eu aderi à moda de tecer comentários no Facebook? Vejamos.
Eu percebo que há um fenômeno cognitivo que creio melhor chamar de lacuna de entendimento.
Lacuna de entendimento tem a ver com um atributo que temos em nossos cérebros, bastante conhecido, que é a nossa incrível capacidade de percebermos padrões onde quer que foquemos nossa atenção.
Prometo que não vou entrar em detalhes técnicos aqui neste post, e prometo que falarei mais detalhadamente sobre o que é lacuna de entendimento futuramente. Por enquanto, vou usar um exemplo simples para me fazer entender.
Se eu colocar uma sequência de números em uma determinada ordem, tal como 1, 2, 3, 4, X, se eu perguntar a qualquer pessoa o que seja o X, qualquer um pode dizer que X é o número 5. Há um padrão óbvio na sequência e todo mundo percebe.
Se eu complicar um pouco a sequência, cada vez menos pessoas conseguem perceber sua lógica e poucos acertam o que seja o X nessa sequência mais complicada.
Em uma sequência muito difícil, quase ninguém acerta X.
Essa capacidade de reconhecer padrões é poderosa, mas relativa, concluo.
Ela funciona para a compreensão de padrões numéricos, sonoros, visuais, táteis, enfim, é uma capacidade de nosso cérebro, e ele é bom nisso, embora imperfeito. Nossos cérebros recebem dados dos órgãos do sentido e tentam achar alguma ordem no meio do caos de sensações. Basicamente, é nessa capacidade de reconhecimento de padrões que se baseia a lacuna de entendimento.
O que o Facebook tem a ver com isso?
Acontece que se eu iniciar uma sequência de palavras, numa determinada ordem, nosso cérebro irá tentar naturalmente buscar o X que falta no final, quer queiramos ou não.
Por exemplo: se escrevo uma frase incompleta, nosso cérebro irá completá-la. Digamos que eu escreva "o utensílio que uso para fritar ovos é a f...", todos perceberão que a palavra faltante é frigideira. Se eu omitir a letra f, alguém poderia dizer que a resposta é não a frigideira, mas a panela, a chapa ou grill, ou outra coisa qualquer.
A palavra que está faltando na frase é uma lacuna, e sem ela, não há um entendimento completo da frase. A falta de entendimento de uma frase é uma espécie de falha em uma sequência de ordem. Sem essa ordem, há algum caos na mente de quem a lê, e a mente odeia o caos, a desordem, a falha de entendimento, a incompletude e a incoerência cognitiva. Exasperado, você lerá a frase e sentirá a necessidade urgente de complementá-la com a palavra que falta, seja ela qual for.
No entanto, o vazio só pode ser preenchido por algo que seja de seu conhecimento. A frase precisa fazer sentido para você, senão, o caos continua. Se não conseguimos identificar um padrão, sentimos frustração e insegurança, porque a falta de padrão é o caos e o caos nos assusta profundamente. O caos cognitivo é uma ameaça ao nosso cérebro. Não gostamos disso e nos esforçamos para que haja alguma ordem naquilo que observamos e vivenciamos.
Uma frase incompleta gera uma lacuna de entendimento. No entanto, um texto incompleto também gera lacunas de entendimento. Um texto, quer dizer, um conjunto mais ou menos complexo de frases interligadas, mas com incoerências lógicas, deixa qualquer leitor exasperado. Um texto que fale sobre um acidente em uma rodovia qualquer deve necessariamente falar onde ocorreu, se houve mortos ou feridos, qual foi sua provável causa, e se tudo está normalizado. Se alguém anuncia um acidente e não informa esses dados elementares, haverá uma lacuna de entendimento óbvia. Se um texto assim for postado por alguma agência de notícias no Facebook, ela gerará centenas, milhares de comentários indignados, e com toda razão.
As pessoas odeiam serem enganadas por falsas notícias. Elas odeiam serem manipuladas por textos tendenciosos. Elas odeiam tentativas grosseiras de manipulação de suas opiniões. Elas odeiam opiniões seletivas. Elas odeiam mostras claras de injustiça de qualquer tipo. As pessoas detestam textos que não sejam coerentemente elaborados, e tentam desesperadamente corrigir essas falhas, ou qualquer outra falha observada, por meio de comentários os mais variados possíveis.
No entanto, há textos que não apresentam lacunas de entendimento que são óbvias para todo tipo de leitor.
Há textos que são elaborados de maneira que pareçam logicamente coerentes, que não exponham falhas estruturais gritantes, e portanto, são lidos de forma aparentemente coerente, sem obter do leitor nenhuma manifestação que o denuncie ou o critique. Há textos que parecem uma sequência completa e acabada, sem nenhum X em qualquer parte que seja de sua composição.
Isso se deve porque, como dito mais acima, a capacidade de detecção de lacunas depende de quem recebe a informação, e não de quem a cria. Se alguém cria um texto sobre algo que o leitor não entende, este pode não perceber nenhum tipo de lacuna e simplesmente consumir a informação sem crítica, isto é, por vezes, alguém pode criar um texto com lacunas sutis, que aos olhos de muitos leitores pode ser límpido e claro como um texto perfeito, não o sendo, porém, para um leitor com um senso crítico mais apurado.
Se alguém cria um texto com uma lacuna intencional, mas sutil, criada com o intuito de passar desapercebida, essa lacuna só será denunciada por um leitor que tenha a capacidade cognitiva de percebê-la.
Em um dado texto qualquer, pode haver denúncia de lacunas que não são reais, mas que o denunciante entende como uma lacuna, porque sua capacidade cognitiva assim a interpreta.
Então, em um texto razoavelmente complexo do ponto de vista estrutural, e tratando de um conteúdo razoavelmente complicado, há certamente lacunas lógicas em sua estrutura, lacunas reais de conteúdo, criadas intencionalmente pelo escritor, lacunas não intencionais de todo tipo, e por fim, certamente numerosas lacunas de entendimento, oriundas das mentes de seus muitos leitores, e que podem ser legítimas ou não, dependendo da fundamentação que esses leitores apresentem para confirmá-las.
Há muita gente hoje vivendo de escrever sobre denúncias de outros textos, em uma cruzada contra suposta manipulação de informação, suposta tentativa de controle de massa, vivendo em um esforço de tentar mostrar ao mundo que aquilo que é dito em geral pela mídia tradicional, pela internet ou outros canais, não é realmente a verdade, mostrar que o mundo é mais complexo do que a mídia quer que acreditemos, e que precisamos ver o outro lado da moeda, observar outros pontos de vista sobre o assunto que estamos lendo, para que formemos nossa opinião de maneira mais aprofundada do que formaríamos se apenas déssemos por verdadeiras as informações que a mídia em geral nos apresenta, sem questionamentos, sem crítica, sem ruminação, sem argumentação.
Um comentário pode parecer banal, mas pode ter embutido num mero ícone, num emoticon, num sorrisinho de um bonequinho, um significado que aponta para a dúvida, o ceticismo, a desconfiança ou para a denúncia direta. Comentários-denúncia podem fazer com que repensemos com mais cautela aquilo que estamos lendo.
Um comentário-crítica de um leitor A é uma forma de se preencher uma lacuna de entendimento tanto de A quanto de B, ainda que B tenha lido o texto criticado e não a tenha percebido. Passará, no entanto, a percebê-la, depois da denúncia de A. É assim que a coisa funciona na internet hoje em dia.
Assim, pergunto a mim mesmo: não sou eu também capaz de perceber lacunas de entendimento em tudo aquilo que é passado ao mundo pela Internet?
Obviamente que sim, como qualquer outro cidadão do mundo, porque lacunas de entendimento não pressupõem que aquele que as têm precisem ser experts ou especialistas a respeito daquilo que é percebido como incompleto ou corrompido por essas lacunas.
A percepção de lacunas de entendimento depende apenas da experiência única de cada ser humano, de cada história de vida, de cada biografia única e específica. Logo, não há exigência de que alguém precise ser expert a respeito de uma dada informação para que possa relatar uma percepção de uma lacuna.
Posso apontar o dedo para um jornalista líder de audiência e dizer ao mundo simplesmente que o que esse cara disse é uma mentira, ou uma meia-verdade, ou uma tentativa absurda de manipulação, desde que eu perceba no que ele diz uma lacuna de entendimento que possa ser verbalizada, expressa em palavras e ser lida por pessoas normais.
Se os leitores de minha denúncia irão concordar comigo é outra história. Meu próprio comentário-denúncia pode ser entendido como incompleto, e nesse caso, serei também denunciado, mas esta é a natureza na comunicação humana.
Por isso Mark Zuckerberg não permite que seu Facebook adote a opção de discordar de uma postagem, um "dislike", porque é exatamente a discordância ou concordância que gera sua enorme audiência. E é a discordância que não pode ser simplesmente "descurtida" que obriga um eventual leitor a se dar ao trabalho de tecer comentários-denúncia, num afã de tentar colocar um pouco de ordem e entendimento onde percebe erro, falha, tentativa de engodo, e por fim, caos informativo, uma ameaça à sua compreensão do mundo, e uma forma de altruísmo na busca de espalhar o alerta, ajudar os incautos, proteger as pessoas daquilo que é visto como um perigo, porque é assim que nossas mentes funcionam. Onde há caos, há perigo.
Você denunciaria ao mundo uma postagem na qual percebesse intimamente alguma lacuna de entendimento que julgasse grave a ponto de colocá-lo em risco, e a seus semelhantes?
A resposta parece óbvia, mas não para mim.
Ainda não vi qual possa ser o critério que eu deveria usar para selecionar qual lacuna merece ser denunciada publicamente, nem o que ganho com isso.
Raramente comento algo no Facebook.
Claro, vejo lacunas o tempo todo.
Eu vejo lacunas.
Isso lembra o filme "Sexto sentido", não lembra?
E se, numa sequência 1,2, 3, 4, X, eu acabar denunciando ao mundo que o X que falta é o 6, e não o cinco?
Onde fica a linha que separa uma lacuna de entendimento legítima da paranoia pura e simples?
Eis um bom motivo para não usar esse blog como um local para tecer comentários a respeito daquilo que é anunciado como notícia mundo afora: eu não sei o ponto onde deixo de falar sobre um problema real e passo a falar de algo que não existe.
Porque não podemos confiar na certeza de nossas lacunas, olhamos a notícia, depois os comentários e, quando percebemos que alguém disse em poucas palavras aquilo que nós mesmos poderíamos ter dito, então percebemos que não estamos sendo paranoicos, porque alguém mais pensa como nós, e acabamos dando um "like", curtimos o comentário que corroborou nossa visão pessoal daquilo que acabamos de ler.
Somos animais sociais e não queremos ser vistos como paranoicos.
O corajoso que primeiro denuncia leva, então, a fama por ter tido a coragem de expor-se sem medo de ser criticado publicamente como um paranoico. E as pessoas amam ser famosas, ainda que apenas por meio de um comentário espertamente curtido por dezenas de outros seus semelhantes, que concordam com sua opinião.
Zuckerberg sabe disso.
Esse conhecimento vale ouro.