Estou lendo "A Conquista da Felicidade" de Bertrand Russell. Um livro delicioso, escrito na década de 30 do século passado, mas espantosamente atualizado. Estavam configuradas já naquela época, ao menos nos Estados Unidos, as bases para o atual século XXI, de Bill Gates. O que Bill Gates tem a ver com isso?
Bem, há um capítulo no livro de Russell em que ele tece comentários acerca da inveja que sentimos em não podermos ter aquilo que os outros têm. Tenho um par de pés, mas o vizinho tem um par de pés e um par de sapatos. O outro tem ainda os pés, os sapatos e um carro, para não gastar os sapatos e não cansar os pés. E outro tem ainda um jato particular, para não perder tempo viajando de carro. E tem ainda, no final da linha, ele, ele mesmo, Bill Gates, que se não é o homem mais invejado do mundo, é um dos mais. Para sermos exatos, não é o homem que é invejado pelo que é, mas sua fortuna que é cobiçada pelo tamanho que tem, mesmo sabendo que, segundo os próprios bilionários dizem, não há nada que você possa comprar no mundo de hoje com uma fortuna de um bilhão de dólares que não possa ser comprada por uma que seja apenas de dez milhões. Em suma, os próprios ricos admitem que não se precisa de tanto dinheiro para se ter quase tudo que o dinheiro possa comprar, exceto algumas extravagâncias irracionais. Então, por que queremos tanto dinheiro? E por que tanta inveja e cobiça?
Eu, de minha parte, a muito tempo que percebi, e Russel já era da mesma opinião quarenta anos antes de eu ter nascido, de que o melhor que o dinheiro pode comprar é o tempo e a segurança: bastaria que eu tivesse o bastante para não precisar mais trabalhar e viver com relativa segurança, e o daria por suficiente. Por quê?
Segundo meus cálculos, um cidadão com dois ou três milhões de reais pode viver feliz para sempre... se é assim, por que queremos mais?
O problema é que não temos esses dois ou três milhões, nem sombra disso. Se tivéssemos um décimo desse valor, aqui no Brasil, seríamos pessoas afortunadas. Então, o problema não é a inveja, mas a miséria.
Isso me faz recordar uma história que li numa revista Seleções a muitos anos atrás, quando ainda era uma criança, e que marcou profundamente a maneira como encaro o mundo financeiro e a vida. Eu devia ter meus doze anos, treze anos, não mais. E a revista era velha, muito velha, da década de cinquenta. Um primo de minha mãe, bem de vida, tinha no porão de sua casa uma caixa de papelão do tamanho de uma geladeira completamente cheia de revistas Seleções antigas, provavelmente desde a década de quarenta até as mais recentes naquela época, no início da década de oitenta. Ele deixava que eu brincasse a vontade com aquilo tudo, e numa delas eu li um artigo com um estranho nome: "Você já viu um clip enferrujado?".
Era um texto que dizia que provavelmente nós nunca vimos clipes de papel enferrujados, porque eles são de valor tão irrisórios que são descartáveis a ponto de sequer enferrujarem pelo tempo e pelo uso. Esse texto me revelou algo que hoje perdeu a importância, que é o hábito de utilizarmos de fato aquilo que temos. O texto falava de um par de chinelos de couro que o proprietário usou confortavelmente por décadas, embora vez por outra uma tira soltasse e ele tornasse a concertá-la. Nada durante aquele tempo havia feito com que o chinelo de couro perdesse a sua utilidade real, e fora isso, fora a sua utilidade, não havia porque substitui-lo, trocá-lo, jogá-lo fora por outro mais novo. Nada que o novo pudesse oferecer o velho já não oferecia. Enfim, o texto me ensinou que devemos usar as coisas, mais do que simplesmente tê-las pelo desejo de tê-las.
Passados muitos anos, vim a descobrir que assimilara aquele texto de forma profunda. Tenho objetos de uso pessoal que simplesmente estão comigo, em uso, a décadas. Um par de óculos, que comprei a dez anos atrás, só foi aposentado agora, a poucos dias. Minha lente de contato tem quase seis anos! Meu micro é um Pentium II 266! E eu não tenho carro... numa cidade como Goiânia, onde há um carro para cada dois habitantes, eu sou um caso raro. Simplesmente vivo sem os carros.
Depois, vim a confirmar esse modo de vida quando li que "existem dois objetivos para serem atingidos na vida: primeiro, conseguir o que se quer; e depois, desfrutar o que se obteve. Apenas os mais sábios realizam o segundo", um pensamento de Logan Pearshall Smith, que não sei quem é, mas cuja frase se encontra em "A Universidade do Sucesso", dele, dele mesmo, Og Mandino. Sei que citar frases é fácil, mas vejo-a como um desafio bastante difícil de ser alcançado.
Acho que vivemos num mundo de excessos em todos os sentidos. Todas as nossas desculpas para consumir desenfreadamente são apenas isso: desculpas. Não acredito em ascetismo, em desapego, em abandono de nosso estilo de vida, mas acho que é besteira o consumismo impensado. Só deveríamos consumir depois de refletirmos bastante sobre a real necessidade de realizarmos esse consumo. Só deveríamos comprar clipes depois que nossos clipes velhos estivessem enferrujados demais para serem úteis.
Por falar em consumo e mesmo reciclagem, e em coisas antigas e ainda boas, estou ouvindo "Music of the Gothic Era", da coleção Deutsche Gramophon, aquela que saiu em fascículos a alguns anos atrás. Sim, eu comprei os cem fascículos, pacientemente. Sabia que teria algo para ser consumido pelos próximos cem anos. Não me arrependi.
Estudar música erudita envolve estudar sua história real. Pegue um livro comum sobre história da música e verá que antes de Eminem e Skank vieram muitos bons compositores. A maioria melhores que Eminem e Skank.
Neste contexto histórico, a coleção da Deutsche oferece, primeiro, pela ordem cronológica, um CD de cantos gregorianos.
Os cantos gregorianos vieram antes da música gótica. E antes dos cantos gregorianos havia música, mas não há na coleção nada do período anterior aos cantos gregorianos. Talvez um CD com música grega seja uma boa forma de completar esse período pré-gregoriano, mas não há nada de gregos na Deutsche. Aliás, a Deutsche, por questões de mercado, não lançou os fascículos obedecendo uma ordem histórico-cronológica, de modo que se formos ouvindo os CDs na ordem em que foram lançados, ficamos sem uma referência comparativa entre os diversos estilos de época e os diversos compositores, e em obras dos mesmos compositores, não saberemos o que foi composto no início ou no fim da carreira, o que não é muito bom em termos de aprendizado e apreciação de obras de arte. O correto, na minha opinião, é estudar aquilo que se ouve. Então, um livro de história da música e uma pesquisa na Internet sobre as obras de um determinado compositor são coisas fundamentais se quisermos apreciar música erudita.
Sim, a música gótica, com quinhentos anos ou mais, são boas de se ouvir. Muito boas. Duplas e trios de vozes que fazem a mente voar para reinos de Peter Pan, castelos e bosques, inocência e pureza. Arte é isso: um milênio não a faz pior nem melhor que arte moderna, apenas diferente. E se for boa arte, continua digna de ser consumida. Bertrand Russell, um grande filósofo, lógico, matemático e escritor, também continua digno de ser lido. Ele, que, sábio, soube viver até seus 98 anos de idade. Alguém que vive isso e ensina como se faz não pode ser menosprezado. E pensar que um CD de música gótica custa apenas alguns reais e que um livro de Russell, não mais que um CD, e me sinto novamente privilegiado, e duplamente: primeiro, por poder dispor desses trocados necessários para poder ter só para mim essas maravilhas da arte, e segundo, e mais importante, por ser capaz de gozar os prazeres dessa arte, e sentir-me feliz ao fazê-lo, ainda que eu não tenha um bilhão de dólares.
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Bertrand Russel |
Tenho minhas dúvidas de que alguém com apenas dinheiro e mais nada seja capaz de fazer seu dinheiro render em prazer e satisfação da maneira que faço render o meu.
Agora, invejo menos Bill Gates.