Eu sempre falo alguma coisa sobre música neste blog. Nas primeiras postagens, em 2004, eu andava ouvindo Frank Zappa.
Mas já que eu gosto de música, mas gosto também de pensar as coisas em termos de ideias a serem discutidas, ainda que apenas por mim mesmo, vou falar sobre algo que tenho planejado relatar já a alguns meses, mas não o fiz por falta de tempo: vou falar sobre os primórdios de minhas experiências musicais.
Eu, em 2004, ouvia Zappa. Antes disso, eu ouvia rock, e houve um tempo em que eu não ouvia nada, antes de 1970, porque eu não existia ainda. Essa constatação pode parecer boba, irrelevante, mas não é. Eu disse nas últimas postagens que gosto de literatura, mas gosto também de música. Ora, é verdade que gosto de ambas as formas de arte, mas confesso que minhas experiências de apreciação de música são muito mais antigas que as minhas experiências literárias.
Estou falando de um tipo de experiência, a experiência da apreciação musical, que pode dar-se, segundo a ciência, ainda durante nossa estada no útero de nossas mães.
Então, quando digo que minhas experiências musicais devem ser consideradas desde 1970, já que nasci neste ano, falo de uma maneira séria, porque, de certa forma, eu poderia ainda no útero de minha mãe já estar experimentando ouvir certo tipo de música ou som.
Mas, não.
Em 1970, evidentemente já havia muita música de todo tipo. Mas, em 1970 não era um fato comum as mães colocarem música para seus bebês ouvirem ainda no útero.
Não sei dizer desde quando os cientistas sabem que os fetos podem ouvir música ainda no útero. Creio que o sistema auditivo deve formar-se e amadurecer nos estágios finais do processo de formação de um feto, por isso, não faz muito sentido falar em fetos de poucas semanas ouvindo música, mas, de qualquer forma, eles, os fetos, podem ouvir música, digamos, no oitavo ou nono mês de gestação. Eles podem gostar de certos tipos de música? Talvez. É possível que as mães que façam experiências com seus bebês ainda no útero possam tentar e vir a saber se os bebês reagem e como reagem a músicas de tipos variados. Talvez os bebês fiquem mais calmos ou agitados dependendo do tipo de música. Não sei.
Uma coisa é certa: minha mãe não colocou música para eu ouvir enquanto eu ainda estava no útero. Ela provavelmente nem cantou para mim no útero. Sei disso porque se ela tivesse feito qualquer uma dessas duas coisas, ela me falaria. Nunca perguntei, na verdade, mas em 1970, meus pais não tinham nenhum tipo de aparelho de som em casa, nem televisão, nem nada que pudesse reproduzir algum som gravado em algum tipo de equipamento tecnológico. Em 1970, pouco gente tinha toca-discos, toca fitas ou rádio. E minha mãe nunca foi muito de cantar canções de ninar mesmo depois que nascemos, eu e meus dois irmãos. Ela nunca disse que cantava para nós ainda no útero.
Se tivesse cantado, ou se tivesse tocado músicas para mim ainda no útero, eu me lembraria das músicas?
Não sei. Boa pergunta...
Bebês recordam-se de músicas depois que nascem? Guardam essas memórias por quanto tempo? Se sim, essas recordações desaparecem com o tempo? São perguntas para neurologistas e psicólogos...
Então, nasci perfeito, com o sistema auditivo normal, aprendi a ouvir e aprendi a falar normalmente, e em algum momento tive contato com a música.
Com canções de ninar é certo que tive contato. Poucas canções, duas ou três... Nana, nenê, que a cuca vem pegar...
Nos primeiros três, quatro anos de vida, continuamos sem aparelhos de som em casa. Mas então, um vizinho tinha um rádio.
Morávamos numa casa simples, e entre nossa casa e esse vizinho, havia um lote vazio, a que chamamos "data".
Uma data era um lote. Na verdade, eram dois lotes, mas chamávamos aquele pedaço de terra cheio de mato de data.
Pois bem, entre nossa casa e a casa do vizinho, Sebastião Müller, havia a data da família dos Mistura.
Sebastião Müller era apenas o Bastião. Bastião Müller.
Bastião era descendente de imigrantes alemães, vindos da cidade de Limeira, no interior de São Paulo. Nós morávamos no vilarejo de Tujuguaba, pertencente ao município de Conchal, na região de Campinas. Em 1970, Tujuguaba era um grupo de casas tal como ainda é hoje, mas bem mais primitiva e pobre.
Bastião trabalhava na roça.
Acordava cedo, lá pelas cinco da madrugada. Arrumava a comida, tirava água do poço, fazia marmitas, esquentava o fogão a lenha, tossia longa e profundamente devido aos longos anos de cigarro, e ouvia música em um rádio velho e grande, à válvula, que era de onde eu comecei a ouvir minhas primeiras experiências musicais das quais sou capaz de me recordar. Que tipo de rádio era: um Sânio, um Telefunken, um Philco, um Phillips? Não sei, mas apostaria que era um Telefunken.
Entre os anos de 1970 e 1975 houve rigorosos invernos. Naqueles anos, geou nos meses mais frios, e minha mãe nos acordava cedo para ver a fina camada de gelo sobre o mato da data. E do outro lado da data, a família dos Müller se preparava para o trabalho ouvindo rádio.
O que ouvíamos, nós e os Müller?
Música caipira.
Não me recordo de onde eram as estações de transmissão. Provavelmente eram das cidades vizinhas: Araras, Mogi-Mirim, Limeira. O mundo das rádios AM e FM é um mundo à parte.
Mas, pensando bem, naquela época creio que só se pegava no rádio dos Müller as ondas AM. Mas essas ondas são de longa distância. Então, era possível que eu ouvisse estações de longe, muito longe. Quem sabe de São Paulo, Rio de Janeiro ou ainda mais além. Não sei.
Eu me recordo de ouvir muito as músicas de Tonico e Tinoco. Eles dominavam as madrugadas com suas vozes agudas e suas letras caboclas. De quais músicas me recordo? Não sei... moreninha linda, do meu bem-querer, é triste a saudade longe de você...
Mas não só esta, é certo.
Na primeira metade dos anos 70 ainda havia muita gente que ouvia com saudade as duplas que se consagraram na década de 60 e mesmo na de 50. Não havia ainda duplas modernas como veríamos alguns anos depois. E, além do mais, havia outros tipos de música nas estações, mas os Müller só ouviam música caipira, porque ou só gostavam deste estilo, ou o aparelho só pegava aquela estação. Não importa. Seja por gosto, seja por falta de opções, eles, os Müller, ouviam sempre as mesmas coisas, e eu me recordo dessas madrugadas frias, o tossir longo e rouco do Bastião, o ranger das cordas no rolo da manivela do poço d'água, o estalar das panelas, e Tonico e Tinoco.
Eu nasci caipira, concluo.
O que ouvíamos, nós e os Müller?
Música caipira.
Não me recordo de onde eram as estações de transmissão. Provavelmente eram das cidades vizinhas: Araras, Mogi-Mirim, Limeira. O mundo das rádios AM e FM é um mundo à parte.
Mas, pensando bem, naquela época creio que só se pegava no rádio dos Müller as ondas AM. Mas essas ondas são de longa distância. Então, era possível que eu ouvisse estações de longe, muito longe. Quem sabe de São Paulo, Rio de Janeiro ou ainda mais além. Não sei.
Eu me recordo de ouvir muito as músicas de Tonico e Tinoco. Eles dominavam as madrugadas com suas vozes agudas e suas letras caboclas. De quais músicas me recordo? Não sei... moreninha linda, do meu bem-querer, é triste a saudade longe de você...
Mas não só esta, é certo.
Na primeira metade dos anos 70 ainda havia muita gente que ouvia com saudade as duplas que se consagraram na década de 60 e mesmo na de 50. Não havia ainda duplas modernas como veríamos alguns anos depois. E, além do mais, havia outros tipos de música nas estações, mas os Müller só ouviam música caipira, porque ou só gostavam deste estilo, ou o aparelho só pegava aquela estação. Não importa. Seja por gosto, seja por falta de opções, eles, os Müller, ouviam sempre as mesmas coisas, e eu me recordo dessas madrugadas frias, o tossir longo e rouco do Bastião, o ranger das cordas no rolo da manivela do poço d'água, o estalar das panelas, e Tonico e Tinoco.
Eu nasci caipira, concluo.