segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A defesa e o ataque

Na medida em que os dias passam, as semanas passam, e os anos vão também passando, tento olhar para o futuro que nos espera e tenho sentido um certo temor, que considero não sem alguma justificação.

Eleições após eleições, além de outras grandes formas de consulta popular no Brasil, têm mostrado um país fortemente contrastado, para não dizer segregado, dividido ou polarizado.

Política não é um assunto fácil, de maneira que tentarei tecer minhas considerações sobre o tema com alguma cautela e simplicidade, buscando afixar-me em alguns marcos seguros, dos quais necessitarei para justificar meus temores.

Eu perguntei a mim mesmo: o que é a política? Por que a política?

A resposta simples é que a política é a forma civilizada de pessoas entrarem em acordo dentro de regras sociais, de forma a se evitar que as coisas sejam decididas pelos mais fortes, por meio de violência física.

Essa definição é muito parecida com a definição de Direito. De maneira também simples, podemos dizer que o uso de regras codificadas em lei e impostas a todos por um Estado é uma forma de se resolver as coisas sem o uso de muita violência. No mundo do Direito, o Estado pode, sim, usar da força física para fazer valer suas leis, mas somente em casos especiais bem delimitados.

Ora, a sociedade dita civilizada tem boas razões para buscar os mais diversos meios de resolver seus problemas sem recorrer ao uso da força física e da violência.

A sociedade humana, tal como a conhecemos, data de cerca de seis mil anos. Ao longo de tantos séculos, muito se recorreu à violência e à força, seja através de guerras, disputas entre sociedades, e ao assassinato, à escravidão, à pancadaria pura e simples do mais forte contra o mais fraco.

A realidade da violência não deve jamais ser negada entre seres humanos. Vivemos em uma época em que a violência direta de um ser humano contra outro é tida como coisa incomum e indesejável, punível e sujeita às mais graves recriminações. Aprendemos a conter a violência ainda no berço.

Mas, queiramos ou não, a violência é parte da vida, tal como a conhecemos em todos os recantos do planeta. Ela é tão real, onipresente e brutal que os meios de detê-la estão codificados em quase todas  as combinações de DNA que possam existir nos diferentes animais, plantas e organismos que a ciência conhece e estuda.

Não há ser vivo sem mecanismos de defesa contra ataques potenciais. Mesmo o mais indefeso e frágil dos animais possui em sua forma física, em sua aparência, em seu comportamento, em seu modo de existir, maneiras de se defender. Muitos seres vivos possuem ainda não somente os mecanismos de defesa, mas os de ataque, que lhe garantem a sobrevida, o alimento, a procriação e a perpetuação da espécie.

Na natureza, a defesa pressupõe o ataque.

A natureza humana também não é diferente. Somos dotados dos meios de defesa e ataque. Somos animais capazes de nos defender da ameaça de outros animais e da própria espécie. E somos capazes de atacar violentamente para conseguir nossos intentos. Essas considerações não deveriam ser surpresa para ninguém.

No entanto, vivemos em uma época em que nos consideramos civilizados. Dispomos de organização tal que a violência é inibida por diversos mecanismos, e não esperamos que a violência aumente, mas diminua constantemente no tempo. Esperamos que nos tornemos mais e mais civilizados.

Mas nem sempre as sociedades seguem destinos linearmente constantes rumo a um processo civilizatório, isentas de percalços, desvios, retrocessos e recaídas.

Poucas civilizações, se é que existiu alguma, seguiram processos históricos longos na mais perfeita paz e harmonia social.

Seremos nós brasileiros o povo dotado de habilidade social suficiente para não incorrer em episódios de violência social tais como guerras, revoluções, convulsões sociais e outros tipos de retrocessos?

Achamos que sim.

Achamos que somos um povo pacífico e harmonioso.

Achamos que tudo se resolverá da melhor maneira. Não achamos que as coisas irão piorar. Não temos razões para pensar diferente.

Ou temos?

Penso que não temos vivido grandes convulsões sociais tais como guerras, mas tivemos revoluções e temos índices de violência social sem paralelo em todo nosso passado.

Tivemos guerrilha em pequena escala em 1971, tivemos golpe militar em 1964, participamos em pequena escala da II Guerra Mundial lutando em território inimigo, e tivemos a guerra civil constitucionalista em 1932. Tivemos a revolução de 1930, e antes disso, outras convulsões menores que sequer lembramos de tê-las estudado nos livros e nas escolas. Nós tivemos longas décadas de relativa paz, é verdade.

O que a política teve de contribuição dada neste período todo?

Podemos dizer que as divergências sociais que poderiam ter dado motivos para o surgimento de episódios de violência mais contundentes foram adequadamente contornadas pelos meios políticos. Se não o foram pela política, como se solucionaram?

Divergências sociais desaparecem com a mera passagem do tempo? Em geral, somente a muito longo prazo. Em geral, convicções que dão razão a conflitos sérios são perenes, imutáveis, não sujeitas a acomodações definitivas. Há divergências que jamais são superadas. São, no máximo, apaziguadas, acomodadas pelas partes envolvidas, e a defesa somente abaixa a guarda quando morre o atacante.

Em um país com 200 milhões de habitantes, geograficamente desigual, socialmente desigual, economicamente desigual e culturalmente desigual, é espantoso que as diferentes facções que decorrem dessas inúmeras diferenças e polarizações tenham sabido contornar suas divergências. 

Se a política e o Estado, através de suas leis, têm sido capazes de contornar os conflitos até então, isso é questão em aberto que uma leitura mais atenta da história pode responder.

Já quanto à capacidade de contornar conflitos futuros, resta a expectativa de que sim, de que o Estado consiga contorná-los. A questão é: desejará contorná-los?

Em um momento histórico em que forças políticas deixam de apaziguar conflitos sociais e passam a estimulá-los, o que se pode esperar?

Dado que as forças políticas entendam que a melhor defesa é o ataque, o que se pode esperar?

Dado que os seres humanos não são animais que se submetem a ataques sem a devida revanche, que não se submetem sem muita luta, o que se pode esperar?

A relativa paz social das últimas décadas foi fruto da capacidade política das partes envolvidas em conflitos em transcender e achar alternativas à violência ou simplesmente foi o caso de que nos conflitos existentes, o atacante não teve força suficiente para representar uma ameaça à sua vítima potencial?

Vivemos décadas de paz porque tivemos instituições que souberam apaziguar conflitos ou tivemos paz simplesmente porque não houve conflitos? 

Eu prometo que vou tentar responder a essas questões.

Quão radicais foram os conflitos passados? Quão dividida esteve a sociedade brasileira em décadas passadas? Quem tomou a iniciativa de agredir quem? Quem intercedeu a favor ou contra quem e como a coisa foi resolvida sem um banho de sangue?

Eu disse banho de sangue? No Brasil, o país do samba, das praias e do futebol?

Precisamos entender nosso contexto atual. Não me consta haver garantia de paz social perpétua concedida a um povo qualquer que seja, por mais bela e alegre que seja a sua cultura e o seu passado.

O ataque, a agressão e por fim a violência é a decisão política extrema, um recurso final, mas nem sempre.

Onde está o agressor?

Quem é o agressor?

Quando ele agirá?

Ele já não está agindo?

Você às vezes não se sente socialmente agredido?

Pense bem.

Identifique o agressor...