quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Tudo estará bem?

A quadragésima quarta questão da série que discuto recentemente neste blog relaciona-se com a pergunta anterior, objeto de longa discussão no último post.

A quadragésima quarta pergunta é esta:

"Tudo estará bem?"

Nesta pergunta, não me preocupo com o presente, com minha situação atual, mas a situação futura.

Eu tenho discutido neste blog razões contra e a favor de mudanças de vida. Uma das razões contra nos envolvermos em desagradáveis processos de mudança é que, apesar do que diz o mundo a nossa volta, não estamos sentindo que nossa vida esteja ruim a ponto de precisar ser mudada.

Apesar de que sejamos confrontados com pessoas em situações melhores do que a nossa o tempo todo, podemos intimamente sentir que estamos vivendo bem. O mundo pode apontar em nós mil defeitos, mas, se em nosso íntimo não achamos que sejam defeitos que nos incomoda, que importa? Além do mais, não há ninguém perfeito. Tudo mundo tem defeitos. Então, por que mudar? Além do mais, se todos têm defeitos, temos que tolerar uns aos outros, desde que nossos defeitos não tragam prejuízos a mais ninguém além de nós mesmos.

Ora, que me importa se metade do povo russo é alcoólatra? Paciência! E, por fim, que mal faço aos russos se meus defeitos são apenas meus, e não os prejudica? Que vivamos nós e os russos cada qual com seus defeitos e vivamos em paz. Tudo pode estar bem.

Mas, se tudo está bem, posso usar este estado atual de coisas como justificativa para meu comodismo?

Posso, exceto que, como disse, as coisas mudam.

Se tudo está bem hoje, não tenho, no entanto, garantias de que estará bem amanhã. Defeitos tendem a trazer problemas a médio e longo prazos. Um problema pessoal pode se tornar um problema social, e uma situação sem problemas hoje pode evoluir para uma situação problemática amanhã, embora o inverso possa ser verdadeiro também. Evidentemente, não é incomum que um problema atual se resolva de alguma forma ao longo do tempo sem que precisemos fazer nada com relação a ele, mas esta não é uma regra. É apenas uma constatação. A possível solução espontânea de um problema presente vai depender da natureza do problema, e o bom senso pode ser suficiente para servir de guia para que nos preocupemos ou não com uma parte deles, já que podemos discernir com razoável acerto quais deles que têm potencial de resolução futura espontânea e quais precisam de nossa ação.

É com relação àqueles problemas que têm potencial futuro de se agravarem é que me refiro quando faço a pergunta acima. E mais: há os novos problemas, sobre os quais não temos nenhum prognóstico presente. 

Assim, uma pessoa sensata deveria ser capaz de avaliar sua vida presente e admitir honestamente que a vida presente que leva está bem e seus problemas atuais são administráveis e sua vida prescinde de mudanças, a despeito das recomendações do mundo à sua volta. Mas esta pessoa sensata deveria igualmente ser capaz de perceber que a inércia presente é apenas um estado passageiro, e que não deverá durar muito tempo, e que, portanto, mais cedo ou mais tarde, as coisas exigirão que ela tome alguma atitude com relação a um estado de coisas novo, porém indesejável.

Assim, podemos dizer que hoje tudo está bem, mas não podemos dizer com a mesma segurança que amanhã tudo estará bem. Não há espaço aqui para desejos.

Claro que desejamos que amanhã tudo esteja bem, mas não temos esta certeza, e portanto, podemos justificar nossa inércia atual por um certo tempo, mas este estado cômodo deverá mudar, quer queiramos, quer não. 

Assim, se teremos que agir no futuro para minimizar as consequências de problemas presentes, porque esperar até as coisas piorarem?

Não seria mais sensato realizar pequenas mudanças agora, quando os problemas não são tão graves, do que deixar para depois, quando então talvez seja tarde demais?

Por que não ser previdente?

Não precisamos agir hoje, diria o teimoso, ou preguiçoso, porque hoje tudo está bem. Poderia se argumentar tal como na parábola bíblica dos lírios do campo, que não fiam nem tecem, sob a alegação de que cada dia que cuide de seu problema, e que portanto, estando hoje tudo bem, nada há com o que se preocupar, e que o amanhã com os seus problemas terá seus devidos cuidados no momento certo, que é exatamente o amanhã.

Isto equivale a dizer que hoje não temos porquê nos preocupar, porque tudo está bem.

Certo, eu acato o argumento.

Em seguida, retruco com uma pergunta, mais uma delas, a quadragésima quinta, a qual tratarei no próximo post, porque então já estaríamos indo longe demais com o post presente.

Então, para não perdermos a oportunidade, porque hoje é dia de Natal, reafirmo aqui minha fé no Deus criador, certo de que Ele esteve entre nós, e de que somos feitos à Sua imagem e semelhança.

Sigamos, pois, em frente, renovada a nossa fé!

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Tudo está bem?

A quadragésima terceira pergunta da série que ando tratando ultimamente neste blog é uma pergunta simples, mas que, caso respondida adequadamente, pode elucidar muito a respeito da resistência que temos às mudanças que precisamos implementar em nossas vidas.

Na postagem anterior, questionei se não seria o caso de nós, seres humanos, agirmos melhor não nos preocupando com problemas triviais que atormentam nossas vidas. Não seria mais sensato vivermos sem preocupações desnecessárias?

A aversão que temos a enfrentar problemas nos leva a questionarmos a real necessidade de mudanças. No entanto, sabemos que vivemos vidas imperfeitas. Então, quando argumentamos que seria melhor deixar de lado as preocupações com problemas e nos concentrarmos mais em nossas fontes de alegria e prazer, surge esta nova pergunta, a quadragésima terceira, que reproduzo agora:

"Tudo está bem?"

A pergunta é simples. E cobro como resposta uma posição igualmente simples: sim, tudo está bem, ou não, não está tudo bem.

Uma pessoa pode dizer honestamente que está tudo bem com sua própria vida, e somos forçados a admitir que não temos como saber se isto é verdade ou não. Comparamos o aspecto exterior da vida de uma pessoa e chegamos à conclusão de que ela poderia ser mais rica, mais saudável, mais sociável, ou o que quer que seja, mas não temos razão alguma para dizer que interiormente, sob o ponto de vista psicológico, esta pessoa não está realmente satisfeita com a vida que leva. Podemos achar que ela não é suficientemente rica, mas ela própria pode achar-se feliz com sua situação financeira. Quem detém o poder de julgar de maneira mais sensata a situação de uma pessoa: ela mesma ou qualquer outra?

Há uma questão filosófica profunda envolvida nesta pergunta. A questão relaciona-se com a liberdade humana. Quão livre uma pessoa é para definir que rumo quer dar para sua vida? Que direito tem uma pessoa de dizer a outra o que esta última deve ou não fazer? Que direito tenho de dizer em um livro de autoajuda que você pode até estar se sentindo feliz com sua vida, mas que na verdade esta sua felicidade é ilusória, e que precisa seguir meus conselhos para ser realmente feliz como eu acredito que deva viver?

Temos a liberdade de fechar livros de autoajuda, dizendo que eles são desnecessários na medida em que consideramo-nos sensatos o suficiente para sabermos por nós mesmos aquilo que é o melhor para nossas vidas, deixando de lado a opinião de quem quer que seja, sob a argumentação de que nos conhecemos melhor do que qualquer pessoa no mundo, e portanto, estamos em melhor condição de saber o que queremos ou não para nossas vidas. E um autor pode dar a opinião que quiser sob determinado problema ou situação de vida, mas sabemos que quem detém a palavra final é quem lê, e se o leitor entender que o problema que o autor aponta não é um problema real para o próprio leitor, então o autor estará falando em vão.

A percepção íntima que temos a respeito de nossos problemas, no entanto, é limitada por uma série de fatores. Podemos de fato nos sentir satisfeitos com nosso estado de coisas, mas não vivemos isolados no mundo. Somos seres sociais. Estamos em permanente contato com outros seres humanos e temos um incrível poder de nos comunicar, trocar experiências e fazer comparações entre nós e nossos semelhantes.

Sempre que interagimos com outras pessoas, nas nossas conversas surgem comparações do tipo tal que desigualdades são percebidas entre aqueles que interagem, e essas desigualdades são estudadas, entendidas, e experiências de vida são compartilhadas. Imagine que isso vem ocorrendo desde que o ser humano habita a Terra, desde milhares de anos. Imagine dois homens primitivos se encontrando, trocando informações, se comparando. Caso um ande de sandálias rústicas tecidas com fibras de algum arbusto, e outro ande descalço, é natural que aquele que anda de sandálias irá notar que seria bom para seu companheiro que este passasse a não só andar de sandálias também, mas ainda o ensinaria a trançá-las, a escolher os arbustos adequados, a preparar a fibra, e assim por diante. O homem descalço pode ter passado a vida sem ter percebido seus pés nus como um problema até este encontro, mas depois disto, uma nova possibilidade se lhe apresentará. Dando margem à dúvida, poderá andar ainda algum tempo com os pés nus, mas no momento em que sofrer um ferimento que ele reconhecer que poderia ter sido evitado se estivesse de sandálias, então verá que sandálias não são uma questão de mero gosto, ou experiência cultural, ou um capricho de pessoas exóticas, mas são de fato ferramentas de utilidade comprovada, meios de proteção que lhe darão mais segurança, mais conforto, mais poder de locomoção, e que, embora possa causar algum desconforto no uso e dar algum trabalho na confecção em geral, são artefatos que valem a pena usar, e então passará a usá-las, ainda que eventualmente.

O mundo moderno não é muito diferente deste mundo primitivo. Evidentemente, nossos problemas básicos de sobrevivência física estão quase todos resolvidos. Aprendemos a usar calçados ainda quando bebês. Mas nossos problemas não se resumem aos aspectos físicos da sobrevivência. Temos infinitas necessidades. Não podemos satisfazer todas, mas podemos satisfazer as necessidades mais críticas. Na verdade, as necessidades, por serem muitas, são um complexo que é difícil de ser entendido. Não sabemos como uma necessidade relaciona-se com outra, qual gera qual, ou se há algumas delas ocultas de nossa compreensão. Muito provavelmente temos uma quantidade enorme de necessidades que desconhecemos. 

Ora, se desconhecemos um problema, como podemos resolvê-lo? 

Mas, observe: eu falava de necessidades, e agora falo de problemas. Necessidades são o mesmo que problemas?

Uma necessidade pode ser entendida como uma carência de algo. Se nos falta algo, isto é um problema? Como podemos ter carência de algo que sequer sabemos que existe? Parece uma situação absurda, mas não é. Uma pessoa pode morrer sem saber a causa, mas a causa pode ser socialmente conhecida. Por exemplo, uma pessoa pode desenvolver problemas físicos por falta de consumo de sal, e achar que esses problemas físicos não são um problema de fato, mas mero acaso, uma fatalidade da vida, um capricho do destino. Não podemos forçá-lo a aceitar o problema como um problema, mas podemos facilmente resolver o problema, caso ele concorde em tentar. Basta de ele passe a consumir sal.

Então, necessidades existem, a despeito de sabermos, ou aceitarmos, ou termos consciência delas. E necessidades são consideradas problemas por uma sociedade, ainda que indivíduos possam não ver as coisas desta maneira.

Pessoas podem viver com suas necessidades e problemas sem dar-lhes solução ou combate.

Elas podem viver como se tudo estivesse bem. Elas podem discordar da sociedade como um todo, e considerar suas mazelas um estado normal, aceitável, feliz até.

Temos o direito de questioná-los?

A resposta a esta questão é que problemas são dinâmicos.

Uma pessoa pode achar que o vício do cigarro, por exemplo, não é um problema. Pode sentir prazer no fumo e rejeitar qualquer tentativa de convencimento quanto a parar de fumar. Temos o direito de recriminá-lo pela sua teimosia? Ele não estará correto em seu julgamento baseado em seu estado interno de espírito?

Não. ele está errado, porque embora ele não julgue o ato de fumar um problema, a sociedade julga que seja. E não é apenas uma questão de gosto pessoal, onde uma maioria impõe seus gostos sobre uma minoria. A questão é que o problema que o fumante julga ser somente seu não o é de fato. Fumantes adoecem. Uma pessoa doente precisa de cuidados. Doenças são problemas sociais, e não apenas daquele que está doente. Somos seres sociais solidários, embora possamos dar mostras horríveis de egoismo em diversas situações. Mas em geral, não deixamos as pessoas adoecerem e morrerem sem que seja dado nenhum tipo de ajuda. Mesmo o doente que foi levado à doença por um vício com o qual se ateve por decisão própria, contrariando todas as recomendações de cuidado, ainda assim receberá a ajuda que precisar, e os fumantes só morrem porque não somos capazes de curá-los. Daí que a liberdade do fumante é uma liberdade que atende seus próprios interesses de prazer, mas pune a sociedade que dá asas a esta mesma liberdade. E daí que fumar é vício, e não hábito, porque não consideramos livres as pessoas que trazem prejuízos à sociedade onde vivem e da qual dependem em busca de mero prazer físico momentâneo. Entendemos, benevolentemente, que não é uma questão de vontade, mas de escravidão a um vício, e passamos a ver o viciado como digno de pena, porque, afinal, depois do prazer, ele é quem mais sofrerá as consequências de suas decisões desastrosas.

Assim, necessidades e problemas sociais, ainda que não vistos assim por indivíduos, representam um custo para todos, e não é uma questão de gosto ou liberdade, mas de racionalidade. Se pagamos caro pelas ações de indivíduos que não têm consciência de que seus atos são prejudiciais, temos o direito de fazer esta pessoa consciente de que sua atitude representa um problema para o grupo, ainda que não represente um problema para ela mesma.

Nossa liberdade de permanecer em uma vida que julgamos sem problemas termina no momento em que passamos a prejudicar outras pessoas. Qualquer pessoa que se sinta prejudicada em decorrência de nosso comportamento pode e deve cobrar de nós uma adequação. Nossa liberdade de viver conforme bem entendermos é uma liberdade relativa. Um comodismo egoísta não deveria ser tolerado se levasse alguém mais que o próprio indivíduo acomodado a sofrer as consequências ou prejuízos desse comodismo.

Daí que os pais tem o direito de ter filhos, mas o dever de cuidar bem deles. Daí que as pessoas podem comprar carros velozes, mas precisam respeitar regras de trânsito e daí que uma criança pode gostar de andar descalça, mas precisa andar de calçados, porque pés machucados precisam ser cuidados, e mesmo uma criança precisa entender que não pode dar trabalho aos adultos simplesmente porque é caprichosa e deseja fazer as coisas da maneira que bem entende.

Tudo está bem?

Talvez esteja bem sob meu ponto de vista íntimo, mas está bem sob o ponto de vista social? Estou, com meu comodismo preguiçoso, prejudicando alguém que não tem culpa nenhuma pela minha preguiça? 

Talvez mudar não seja uma questão de gosto, mas de necessidade. Talvez seja mesmo uma questão social. Quem sabe seja mesmo uma questão de Estado e de política.

Mas, dando um passo além, suponhamos que não, não estamos prejudicando ninguém com nosso comodismo. Por que não deixar as coisas como estão? Por que mudar um estado de coisas tão confortável? Afinal, não sabemos o resultado de uma possível mudança. Podemos criar problemas em uma situação que não precisa ser mudada. Por que correr o risco?

Se o comodismo pode ser justificado sob este ponto de vista, quer dizer, se não há uma motivação social para a mudança, um indivíduo sensato deveria saber que o mundo é dinâmico, a vida muda com o decorrer do tempo, e não há garantias de que tudo continuará como está no futuro.

Então, estamos já na área de abrangência da próxima pergunta. Nesta nova área, saímos do campo social e entramos no da previdência, da sensatez e da prevenção.

É o que veremos no próximo post.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Uma chance para a preguiça

Minha pergunta de número 42 da série que ando discutindo ultimamente neste blog é uma pergunta rebelde.

Tenho feito muitas perguntas que procuram entender o mundo da motivação humana, o uso de livros de autoajuda e a dificuldade que temos em mudar um estado de coisas.

Tendo falado da importância da disciplina, busquei na minha última postagem usar recursos argumentativos no intuito de convencer uma possível resistência à mudança. Eu disse que pessoas costumam ser resistentes a mudanças de uma forma negativa, enfatizando problemas, em vez de oportunidades.

Mas, dando um passo além em defesa da indisciplina e contra a rigidez de métodos que podem fazer da vida uma existência sistemática e árida, fiz esta 42ª pergunta, a qual reproduzo aqui e agora:

"Por que não usar nosso tempo livre para fazer apenas o que estamos a fim de fazer pura e simplesmente?"

Esta é a pergunta honesta do preguiçoso que mora em mim, sem firulas ou subterfúgios. Quer dizer: por que tenho de ser disciplinado, ter planos e perder tempo dando atenção aos livros de autoajuda? Afinal, a esmagadora maioria das pessoas vive muito bem sem eles. Por que complicar minha vida se posso viver tranquilamente sem as obrigações que eles me impõem?

Afinal, quem teve a ideia de inventar livros de autoajuda? Quem disse que queremos conselhos de gente que sequer conhecemos? A vida já não tem problemas o suficiente para nos tomar quase o tempo todo? Por que se dar ao trabalho de ler um livro somente para procurar mais problemas dos quais sequer temos noção de que possam existir em nossas vidas?

O mundo tem dessas coisas. Em uma época como a que vivemos, complexa, cheia de gente e desafiadora em termos econômicos, não faltam problemas. Mas não é só isso. Há ainda uma indústria de geração de problemas. Há ramos de atividades cujo esforço se concentra em criar problemas, fazer as pessoas terem a percepção de que possuem o problema, de que o problema é delas também, e depois, vender soluções.

Quase todo o sistema econômico mundial reflete essa lógica. Por exemplo: por que usar um coador de pano encardido e velho se posso comprar uma cafeteira elétrica com filtro de polímeros por um preço módico? Compramos a cafeteira porque somos convencidos de que o coador velho de pano é um problema. Esperar a água do café ferver é um problema. Lavar o coador é um problema. E a cafeteira é a solução.

Este singelo exemplo ilustra bem a mecânica do sistema industrial de substituição de utensílios para casa, mas o raciocínio é o mesmo para quase todo o capitalismo. Livros de autoajuda são parte da indústria do aconselhamento. Eles competem com médicos, psicólogos, religiosos, escolas, universidades, professores, jornais e políticos. Eles, como um conjunto, vendem soluções para problemas que são conhecidos, mas podem vender problemas novos, que sequer suspeitamos que existem.

Por exemplo: se você acha que não ganha bem, alguém vem e escreve um livro que ensina você a ter sua independência financeira. Se você acha que ganha bem, vem alguém e lhe diz que sua satisfação é ilusória, por uma série de razões que você desconhece, mas que é obrigado a aceitar como convincentes, e por fim, sua alegria se esvai e você se vê correndo atrás de mais dinheiro, artificialmente insatisfeito em decorrência de uma simples leitura de um livro. Claro, não há garantia alguma de que terá sua felicidade de volta.

Então, como somos seres humanos, e seres vivos, que vivemos de consumir energia difícil de ser conseguida, temos a tendência ao acomodamento, à preguiça, ao sossego, à aceitação do estado das coisas. Aceitamos a maioria dos problemas, porque dá muito trabalho resolvê-los. Problemas são consumidores vorazes de energia de todo tipo. Uma simples lâmpada queimada é um transtorno. Toda a burocracia do mundo é odiada, porque dá trabalho sem nenhum ganho evidente para quem tem de lidar com ela. E problemas psicológicos, sejam eles reais ou artificiais, costumam ficar em um segundo plano, afastados da vista, da consciência, porque temos mais o que fazer do que preocupar-se com nossas pequenas falhas, nossos traumas, nossas fraquezas profissionais que são pedras no nosso caminho rumo ao nosso primeiro milhão. Não sabemos se estamos sorrindo o suficiente, se estamos respirando fundo o suficiente, se estamos comendo fibras o suficiente, mas não importa. São todos pequenos problemas que não podemos atacar com a energia necessária para vencê-los, liquidá-los definitivamente. São como moscas nos rodeando em uma tarde quente no campo. São parte da paisagem, parte da vida, e fazemos bem em ignorá-los em vez de perdermos nossa serenidade atacando-os.

Então, se é verdade o que digo acima, por que não usar meu tempo livre para fazer apenas o que estou interessado em fazer e nada mais? Por que autoajuda? Por que um esforço de melhoria deliberado, mas trabalhoso e cansativo? Não é verdade que milhões de pessoas vivem relativamente bem sem este tipo de preocupação?

A questão merece uma resposta sensata.

O que tenho a dizer como resposta é que nossa mente possui um mecanismo tal que podemos tentar, mas não seremos bem sucedidos no processo de enganar a nós mesmos. A coisa é interessante, e em um futuro qualquer, falarei mais sobre este mecanismo. O que interessa mesmo, agora, é que podemos fingir que não sabemos nada sobre um determinado fato, mas se sabemos dele realmente, este fingimento não funciona para nós mesmos. Funciona para os outros, quer dizer, uma pessoa que não sabe se sabemos ou não determinado fato pode ser enganada e achar que não sabemos, mas nós sabemos que sabemos.

Ora, se eu leio um livro, e tomo conhecimento de seu conteúdo, não posso mais fingir que não sei sobre aquilo que li. Posso, sim, não fazer nada a respeito, e esperar e torcer que o tempo vá apagando aquele conhecimento de minha memória, até que eu não me recorde mais dos detalhes, e tenha apenas uma vaga ideia daquilo que li, de forma que esta miragem de saber, este borrão de conhecimento não valha mais nada do ponto de vista prático.

O fenômeno do esquecimento é real. Tente, caso não seja um matemático, lembrar-se das regras para se fazer um cálculo qualquer levemente complicado sobre, digamos, geometria. Lembra-se de alguma fórmula específica que sirva para alguma coisa? Provavelmente não. Sabemos que há uma fórmula que ajuda a achar o volume de uma esfera, dadas certas medidas desta esfera, mas como organizamos estas medidas em uma fórmula é algo que não nos recordamos mesmo com muito esforço mental. E o mesmo se dá com o conhecimento dos livros de autoajuda. Um autor lhe recomendará que faça algo, tal como iniciar um diário para ir anotando o desenrolar de um processo onde você tenha que ir reduzindo um certo comportamento até ele desaparecer, e você ter os benefícios que espera ter deste novo modo de vida sem aquele comportamento. Se você não iniciar o diário, não anotar os fatos, deixar para uma semana depois, um mês depois, esqueça: não fará mais, nem se lembrará mais de que deve iniciar um diário, e terá uma vaga lembrança de que tem um comportamento que deseja eliminar, e que tem o método sugerido pelo livro. Se o tempo passar ainda mais, você se esquecerá que leu o livro. Se por acaso lembrar, será uma vaga lembrança, igual aquela que temos de um filme qualquer que assistimos apenas uma vez a dez anos atrás. Se não for um livro ou um filme muito famoso e impactante, saberemos, quando muito, o nome de um ou dois atores e histórias, e os detalhes se perderão para sempre.

O esquecimento é uma forma de autoengano.

Mas, o problema não desaparece, exceto se tivermos muita sorte. Esquecemos a solução, mas não o problema. Deixamos de enfrentar o problema, nos poupamos de um esforço continuado na luta para resolvê-lo, mas ao assim fazer, o problema consolida-se. Ele fica mais forte, mais antigo, mais arraigado. Você perdeu o primeiro round, porque sequer se deu à coragem de tentar eliminá-lo. E ele, mais cedo ou mais tarde, lhe incomodará como uma ferida aberta.

A resposta que dou à pergunta é que usar nosso tempo para fazermos apenas aquilo que gostamos não representa um mau em si, mas nossos problemas permanecerão tais como estavam. Alguns evoluirão para problemas maiores, mais nocivos, mais crônicos. Teremos prejuízos cada vez maiores com eles. O tempo perdido ignorando-os fará com que o tempo de vida que nos resta seja totalmente insuficiente para eliminá-los, de forma que perdemos a esperança de vivermos livres deles. Veja, por exemplo, o caso do fumante. Fumar é um vício terrível, e os fumantes adiam a luta até o momento em que já é quase tarde demais. Os danos do vício não combatido fazem todo o tempo aproveitado em não combatê-lo se esvair em nada. Você deixa, por exemplo, de gastar dois minutos por dia com a coleta de folhas sujas em seu jardim. Depois de um mês, você não gastará o mesmo que uma hora (que são dois minutos multiplicado por trinta dias) para resolver o problema. Você gastará mais. Muito mais. Tarefas rotineiras poupam esforços. Tarefas acumuladas inflam-se como fermento e tomam mais tempo e recursos que a simples soma das tarefas rotineiras e diárias que poderiam tê-las evitado. Resolver pequenos problemas diários é mais simples que resolver mensalmente um grande problema fruto do descaso em resolver pequenos problemas diários. Você pode remover uma montanha de pedra retirando uma pedrinha todos os dias, mas não pode remover a montanha toda num único dia, poupando o trabalho rotineiro diário. Esta percepção acerca do agravamento de problemas e de que problemas grandes são maiores que a soma de pequenos problemas é uma das razões que me levam a responder a pergunta principal deste texto com a afirmação de que nós podemos gastar nosso tempo fazendo somente o que gostamos, mas depois teremos de pagar o preço de nosso desleixo para com nossos problemas, porque eles crescerão ao longo do tempo, tal como fungos, até que se tornem não administráveis e seus danos insuportáveis.

Uma alegação cética do preguiçoso crônico que há em mim resmungou algo que merece uma resposta. O resmungo foi de que, afinal de contas, a vida não está assim tão ruim, e que essas pequenas moscas que nos rodeiam no campo não merecem muita atenção de nossa parte, porque são quase inofensivas, e no mais, tudo vai bem em nossa caminhada.

A resposta a esse retrucar preguiçoso é uma outra pergunta: estamos mesmo sem problemas graves? Essas moscas são mesmo inofensivas? Elas serão sempre pequenas moscas que se contentarão em nos rodear inofensivamente? E, afinal, estamos mesmo em um prado verde em um belo entardecer, na mornidão de sol que se põe, vislumbrando ao longe as cordilheiras, e mais além o oceano azul que se estende, infinito?

Esta é uma pergunta que o preguiçoso precisa responder sinceramente, mas não agora, porque ai já estaríamos adentrando na área de discussão que pertence à quadragésima terceira pergunta.

Tratemos, pois de expressá-la, no próximo post, para que o preguiçoso possa ter o trabalho de respondê-la.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Por que não, Karen?

A questão de número 41 da série que abordo neste blog relaciona-se a uma espécie de engodo mental, que chamou minha atenção na época em que elaborei a minha lista de perguntas sobre autoaprimoramento.

Uma pequena digressão é necessária aqui, para contextualizar a origem desta pergunta. Mas, que pergunta?

A pergunta 41 foi a seguinte:

"Por quê? E por que não? Funciona o jogo de empurra?"

Aparentemente, ela não faz muito sentido. Daí a necessidade da digressão.

Até então, todas as perguntas anteriores eram baseadas em dúvidas que surgiram em decorrência da leitura de alguns livros de autoajuda que andei lendo em 2001. Basta ler algumas postagens anteriores para que se perceba isto. Mas esta pergunta 41 relaciona-se com uma outra fonte de dúvidas. Não é uma fonte muito provável, por isso preciso explicá-la.

Em 2001, eu andava meio deprimido. Eu trabalhava, e nas horas vagas lia e ouvia música. Não estava animado a ouvir música muito agitada. Havia algo em mim que me levava a ouvir coisas melancólicas, tristes. Então, de repente, entrei em um período em que passei a ouvir muito as músicas dos Carpenters.

The Carpenters fez sucesso nos anos 70. Eu ouvia suas canções quando menino, mas nem sabia quem eram seus membros. Então, depois de adulto, redescobri a banda e suas músicas, e percebi que boa parte delas eram familiares, nostálgicas, que me faziam recordar meus primeiros 10 anos de vida.

Quem compunha os Carpenters? De repente, fiquei curioso. Eram dois irmãos. Um rapaz e uma garota. Mas a garota era a estrela.

A garota virou uma mulher, que definhou na anorexia e morreu jovem, no início dos anos 80. Uma história triste e trágica. Agora, parecia que ela cantava a própria tristeza e morte nas canções calmas que eu andava ouvindo.

Pesquisei mais. Como a banda começou? Em um vídeo na internet, a cantora contou a história do começo de tudo. Um dia, seu irmão resolveu formar uma banda. Então, eles precisavam de um baterista. Ela, que não sabia tocar nem cantar nada, se ofereceu para aprender tocar bateria. Alguém, estranhando uma garota tocando bateria em uma banda de música, perguntou: por quê? Ela, em sua irreverência juvenil, que não via limites nem inconvenientes em nada, em uma época em que as mulheres estavam se emancipando socialmente, retrucou de volta: Mas, por que não?

E começou a tocar bateria. Depois, começou a cantar, e sua voz era linda, e ela acabou virando uma estrela pop, até seu trágico fim.

A pergunta de Karen Carpenter ficou em minha cabeça.

Por que não?

Por que colocamos tantas barreiras em nossas vidas? Por que nos submetemos a restrições que outras pessoas nos impõem? Por que deixamos de fazer aquilo que desejamos fazer, simplesmente porque estamos mais preocupados com o que os outros pensam de nós do que com aquilo que nós mesmos desejamos fazer?

Ora, sempre que se fala em autoajuda, se fala em confiança, em determinação, em disciplina, em sonhos e metas a serem alcançadas. Mas, poucos ousam. Se alguém resolve nos contar algo que deseja fazer, logo perguntamos: mas por quê? E então, essa pergunta desencadeia uma série de desculpas, possibilidades, bloqueios, e por fim, planos se transformam em campos minados, em fracassos e desilusão. Quem ousa retrucar um "por quê?" com um simples "por que não?"? Vindo de uma pessoa que ousou em sua época, a pergunta não deixa de ser interessante, porque ela afasta a crítica dos indecisos, dos fracos e dos covardes. É o que podemos chamar de inversão do ônus da argumentação. Se alguém busca razões para não fazer, a pergunta inverte a lógica do questionador e busca razões para se fazer. Por que focar em problemas se podemos focar em benefícios?

Esta é a razão da pergunta.

Vamos lê-la novamente:

"Por quê? E por que não? Funciona o jogo de empurra?"

Resta agora entender o que eu quis dizer com este "jogo de empurra". O jogo de empurra é apenas uma maneira de dizer que a disputa argumentativa entre aquele que questiona a viabilidade de uma decisão e aquele que aposta no sucesso da decisão parte primeiro do questionamento crítico e cético daquele que nada faz, e acredita que ninguém mais pode ou deve fazer, e termina na busca de motivos reais para se permanecer na inação. Quais os ganhos da imobilidade, pergunta o homem de ação ao cínico que o questiona?

A ideia não é convencer o cínico. A ideia é descartar o cínico. É colocá-lo em seu lugar, e fazê-lo silenciar em sua acidez destrutiva. O homem de ações não pode se dar ao trabalho de perder tempo argumentando com o cínico. Tem muito o que fazer.

Mas, e se o cínico mora dentro da mesma mente que, cindida, abriga o sonhador?

É possível convencer a mim mesmo de que devo querer o que quero, sem críticas? É possível silenciar o crítico interior?

Contando as vantagens de se fazer e não as desvantagens, estamos sendo sensatos, ou estamos apenas nos iludindo quanto à inexistência de barreiras e riscos que se escondem em toda empreitada que mereça ser executada?

Esta é uma questão de cálculo de custos e benefícios, e não uma mera questão de retórica ou argumentação. A questão não é calar o crítico exterior ou interior. A questão é ter certeza de que não estamos entrando em uma fria. Esta não é uma decisão trivial, porque envolve autoconvencimento. Em um caso extremo, envolve mesmo o autoengano. Mas então, ao falar de autoengano, pergunto se isso realmente existe ou é possível, e então, já estamos indo longe demais.

Claro, falarei muito sobre autoengano. Mas não agora.

Por hora, basta que saibamos que o jogo de empurra existe, e ele é interessante de se jogar.

Com essas ideias em mente, fiz minha pergunta de número 42. Ela é sincera e relaciona-se intimamente com esta que acabo de apresentar. É o que veremos no próximo post.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Vantagens e desvantagens da disciplina

A quadragésima pergunta da série que fiz relaciona-se ainda com a questão da disciplina. Ao longo das últimas postagens, tenho falado sobre a disciplina como uma possível razão para o sucesso ou não das pessoas na busca de conseguirem o que querem, em especial mediante a leitura de livros de autoajuda, que é um tema maior que busco avaliar.

Sabemos que somos livres para escolher fazer algo que nos é recomendado. Se decidimos fazer algo, e queremos fazer bem feito, precisamos de disciplina. A disciplina impõe limitações que são desagradáveis, mas espera-se que nos recompense com um prêmio no final da luta. Se nos submetemos à disciplina, esperamos algo no final.

Mas será que não podemos ter aquilo que desejamos na vida sem termos que fazer esforços que impliquem em rigidez, limitações e sofrimento? Não se pode alcançar objetivos seguindo uma estrada mais colorida?

Não sei, mas em geral somos informados de que o caminho que leva ao sucesso é estreito e árduo. Não acho que as coisas tenham que ser necessariamente assim, mas em geral, não há almoço grátis na vida. Se quer resultados, é preciso algum esforço.

A pergunta que fiz a mim mesmo foi:

"Quais as vantagens e desvantagens da disciplina?"

A resposta a esta pergunta não é simples, mas podemos tentar respondê-las, ao menos parcial e genericamente.

A disciplina tem vantagens? Aparentemente, sim. Se resolvemos ser disciplinados em busca de um objetivo, somente somos disciplinados porque este é o único caminho que nos leva até ele. Sabemos que este é o único caminho porque alguém já chegou lá antes e nos informou, ou porque raciocinamos e chegamos a esta conclusão. Se houvesse um caminho que prescindisse da disciplina, seguiríamos pelo caminho mais fácil.

Então a disciplina tem esta primeira vantagem: ela aumenta as chances de se alcançar um objetivo, que de outra maneira, não seria possível de ser alcançado, porque exige um esforço que não é fácil de ser despendido. A disciplina é a força que permite que alcancemos resultados difíceis de serem atingidos.

A disciplina tem desvantagens? Certamente, sim. Se resolvermos ser disciplinados em busca de um objetivo difícil, então a disciplina implicará em algum custo. Quando falamos em esforço, falamos em consumo de energia, de tempo, de recursos escassos. Ser disciplinado em geral implica em abrirmos mão de fazermos apenas aquilo que gostamos e estamos com vontade de fazer. Implica em fazer coisas que não gostamos de fazer. Implica em insatisfação por um período de tempo que pode ser curto, mas pode ser longo também, e quanto mais difícil o objetivo, mais tempo passamos fazendo o que não gostamos, e menos tempo temos para fazer o que gostamos. Ora, uma vida assim é triste e frustrante, exceto quando atingimos nosso objetivo, e podemos parar de fazer aquilo que não gostamos, mas que tínhamos de fazer para alcançar o objetivo.

Apresentei uma vantagem e uma desvantagem da disciplina. Existem mais vantagens e desvantagens? Certamente sim. Mas não me aprofundarei neste estudo mais do que o necessário, porque tenho muitas respostas a dar ainda para muitas outras questões em aberto.

O que quero dizer com esta comparação entre vantagens e desvantagens da disciplina é que ela é um mal necessário. Ela cobra um preço em termos de satisfação, mas ela promete entregar algo em troca que compensará nossos esforços. Ela não é exigida desnecessariamente. Ela somente é exigida quando não há alternativas, porque sempre buscamos o caminho mais fácil para nossos objetivos. Mas sem ela, jamais alcançaríamos objetivos difíceis, e por isso, é bom saber que ela existe, como uma ferramenta para as horas difíceis.

Esta constatação, a de que a disciplina nem sempre é necessária, levou-me à próxima pergunta, a qual abordarei no próximo post.

A camisa de força da disciplina

A trigésima nona pergunta da série que abordo atualmente neste blog relaciona-se com a importância da disciplina.

Já tratei da importância da disciplina como uma virtude necessária, embora não suficiente, para se obter algum tipo de sucesso com a leitura de livros de autoajuda.

Se a disciplina, tão necessária, precisa ser seguida, e se é possível tornar-se uma pessoa disciplinada, então, temos meio caminho andado na busca de resultados que os livros de autoajuda prometem. Sem disciplina, não temos sequer condições de dizer se as recomendações sugeridas pelos livros funcionam ou não.

Admitindo então ser possível uma pessoa tornar-se disciplinada, a questão passa a ser de outra ordem.

Dentro do espírito crítico que tem marcado minha abordagem das questões em estudo relacionadas a autoajuda, olho para a disciplina com um olhar cínico, desconfiado, irônico.

Se por um lado admito que as pessoas não têm o direito de criticar livros de autoajuda tomando como base a mera leitura dos mesmos, sem nenhuma tentativa séria de se colocar em prática ao menos uma pequena parte daquilo que é sugerido pelos autores desses livros, por outro vejo a pessoa que é obstinadamente disciplinada com um certo ar de crítica.

Vejamos melhor este meu ponto de vista.

Vivemos em um mundo difícil, é certo. Temos que trabalhar, estudar, cumprir uma série de rotinas que não gostamos, mas precisamos seguir para que nosso mundo não emperre, não desmorone, não entre em colapso. Não somos tão livres como gostamos de imaginar. A vida moderna nos impõe tantas regras e temos tão pouco controle real sobre nossas ações e nosso tempo que somos quase escravos.

Mas, a rotina que nos escraviza precisa ser combatida. Ela não pode ser eliminada de todo, embora muitos utopistas ingênuos ou maliciosos acreditam que pode. Não vou entrar neste tipo de discussão agora. Apenas quero lembrar que não desejamos que a rotina de obrigações tome conta total de nossa vida. Precisamos de algum equilíbrio. Mas, o que é que equilibra nossa vida, que seja contrário à rotina massacrante?

As pessoas costumam achar que o contrário da ordem é o caos. O contrário da disciplina é liberdade. O contrário da regra é a criatividade. A disciplina é uma camisa de força. A liberdade criativa é a festa que tanto desejamos.

Ao constatar que a disciplina é fundamental para se conseguir algum resultado prático no mundo das realizações humanas, não estou tornando nossa vida mais rígida, e assim, restringindo ainda mais as possibilidades criativas das pessoas, fazendo a vida menos alegre, menos livre, menos surpreendente?

Esta é a pergunta que fiz a mim mesmo, a qual reproduzo logo abaixo:

"A disciplina não é uma camisa de força?"

A resposta a esta pergunta, tal como a maioria das perguntas da série, não é fácil de ser dada em poucas palavras.

Se admitirmos que a maioria das pessoas que compram livros de autoajuda sequer se dão ao trabalho de ler uma pequena parte do livro, somos forçados a admitir que essa grande maioria não é formada de pessoas disciplinadas. Podem ter disciplina para realizar uma série de atividades quaisquer, mas não têm disciplina para o ato da leitura. Logo, as pessoas podem ser disciplinadas na realização de certos atos e indisciplinadas na realização de outros. As pessoas dispõem de liberdade de escolha para elegerem serem disciplinadas quando realizam um dado ato e não outro. Assim, as razões pelas quais uma pessoa decide realizar disciplinadamente o ato A e não o B baseiam-se em geral em questões de gosto, de custo-benefício e de viabilidade. As pessoas costumam fazer coisas que gostam. Elas também preferem coisas fáceis de serem feitas, e por fim, elas esperam alcançam algum ganho depois de se esforçarem por algo. Ninguém gosta de fazer coisas contra a vontade, nem de tarefas difíceis, nem de trabalharem de graça.

Mas, se podemos escolher, então somos livres. Não somos forçados a vestir a camisa de força da disciplina contra nossa própria vontade. Ninguém é obrigado a seguir as instruções de um livro de autoajuda contra a vontade, nem lhe são sugeridas ações fáceis e simples que lhe darão riquezas sem fim. Se algo assim é oferecido, a pessoa que se compromete com este algo o faz livremente. Se seu esforço não redunda em nada, ou é muito difícil, ela pode parar na hora que quiser.

Assim, a camisa de força existe, mas não é obrigatória.

Uma pessoa pode decidir seguir regras difíceis, longas, cansativas e que produzirão resultados incertos. Esta escolha pode se dar por uma série de razões, que a pessoa julga serem capazes de justificar seu esforço. Tarefas difíceis em geral prometem grandes coisas, embora não necessariamente garantidas. Uma pessoa pode achar que vale a pena o risco. A decisão é dela.

Uma pessoa que não gosta de levar a vida cheia de regras e de lutas árduas em troca de metas incertas e difíceis pode olhar para outra pessoa que leva uma vida regrada, cheia de objetivos difíceis e ambiciosos e pensar que a vida desta pessoa disciplinada é uma vida triste, dolorosa, que não apresenta nenhuma razão para ser vivida. Pessoas indisciplinadas detestam pessoas disciplinadas. Não é necessariamente uma questão de inveja. Por vezes, o disciplinado batalha em vão. O que o indisciplinado detesta no disciplinado é a ambição. Para a primeira, a ambição da segunda é como vender a alma ao diabo. A ganância do ambicioso faz deste uma pessoa seca, infeliz, e por maior que seja o prêmio oferecido, e ainda que ele o alcance, para o indisciplinado, não vale a pena, e o ganhador do prêmio é apenas um imbecil iludido e enganado.

Uma vida disciplinada tem seus prêmios, mas pode ser uma vida estéril. Nossa cultura moderna prega o contrário. Disciplinados são vistos como pessoas imbecis, que não vivem uma vida verdadeira. São engolidos pelo "Sistema".

Quando eu faço a pergunta a mim mesmo, eu procuro saber se em meu íntimo eu não estaria abrindo mão de uma vida feliz, embora economicamente menos promissora, em troca de uma vida financeiramente mais rica, mas pobre em todos os demais aspectos.

Acho que não vivi o suficiente para ter uma resposta dada por mim mesmo e que satisfaça a minha curiosidade.

Talvez nunca a tenha. Talvez eu a tenha em meu leito de morte. Talvez, porém, eu não venha a morrer de maneira a poder refletir sobre minha vida retrospectivamente.

As pessoas que têm este tipo de oportunidade, a de refletir sobre a vida pouco antes de morrer, costumam dar depoimentos interessantes, embora que óbvios. Não falarei sobre o tema das "reflexões no leito da morte" agora, mas prometo que uma dia falarei sobre o assunto com a atenção que o tema merece. Basta agora que eu aceite que a maioria dos depoimentos dos que refletem sobre suas vidas ao morrer recomendam menos disciplina e mais liberdade e caos, mas decidir se essas recomendações estão corretas ou não fica para outro momento.

Concluo lembrando que só podemos mudar nossa vida com relação ao futuro, e nunca em relação ao passado. Mas o futuro é incerto, de maneira que não há regra capaz de garantir que ser ou não ser disciplinado irá fazer deste futuro uma vida melhor ou pior do que imaginamos para nós mesmos.

A questão da incerteza do futuro é um problema universal não resolvido, e não serei eu que irei resolvê-lo agora, aqui, neste blog, nesta postagem singela. O que quero frisar é que eu tenho consciência de que nem mesmo os moribundos, em que pese a sabedoria de uma visão retrospectiva, detêm o poder do oráculo, e suas recomendações não possuem o poder de corrigir a vida de outras pessoas. A questão da incerteza permanece.

Falarei muito sobre o futuro neste blog, mas não agora. Agora, encerrarei esta argumentação sobre a disciplina e as limitações que ela impõe e recomendarei que leiam o próximo post. Ele abordará a disciplina sob outros aspectos, ampliando o assunto e trazendo outras considerações que julgo interessantes de serem lidas.