quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A borboleta, o mercenário e a noite

Quando nasce uma borboleta? Ela nasce quando sua mãe a põe em forma de ovo ou somente quando rompe seu casulo de seda e estende suas asas para o ar que a acolherá para sempre, enquanto viver?

Um ovo de borboleta é o mesmo que uma borboleta?

Parece que não.

Parece que a existência de uma borboleta se dá quando ela passa a ser aquilo que em geral o são as borboletas: insetos com pares de asas das mais variadas formas e coloridas dos mais variados matizes, que voam belamente entre flores e folhas, e que nos encantam, inofensivas e frágeis.

Uma borboleta não se confunde com um ovo ou com uma lagarta.

E quando nasce um homem?

Ele nasce quando vem ao mundo, no seu nascimento formal, quando deixa a placenta de sua mãe no hospital, ou somente nasce quando se faz senhor da cultura de um povo, quando sai da puberdade e se adentra na sociedade dita produtiva e civilizada?

Mas tenho pensado que há algo no homem que lhe é único assim como há coisas nas borboletas que as fazem únicas e diferentes das larvas e dos ovos, que as precedem.

Em que um homem se diferencia de um chimpanzé ou de um gorila, ou mesmo de uma vaca em um pasto de um campo qualquer?

Muitos dirão que somos superiores, e de fato em certo sentido somos. Mas há um sentido em que somos apenas um pouco diferentes desses animais.

Do ponto de vista biológico, somos muitos semelhantes. Somos apenas mais uma variedade de primatas, e isso não significa vantagem, superioridade ou um grande abismo nos separando.

Do ponto de vista antropológico, somos realmente muito diferentes, porque temos cultura, e acumulamos conhecimento adquirido do passado por nossos ancestrais, o que nos ajuda a viver melhor do que viveríamos sem esse conhecimento.

Mas, animais não vivem ou mesmo pensam?

Não sabemos se pensam, mas vivem muito bem sem cultura. O que é a cultura exatamente?

Não precisamos definir cultura. Basta que tenhamos um exemplo para podermos ver as vantagens dela em nossas vidas: quando faço uma salada de alface, uso muita tecnologia até colocar a primeira folha em minha boca. Um macaco também pode comer uma folha de alface tal qual eu como, mas ele não tem como chegar à salada como nós humanos chegamos. Eles, os macacos, não se aprimoram em virtude do esforço de pensar sobre problemas que enfrentam. Se enfrentam problemas, possuem capacidade limitada de solucioná-los da maneira que nós humanos fazemos.

Mas, quando digo "nós, humanos" estou sendo generoso com a espécie. Na prática, a grande massa de seres humanos não soluciona quase nada. A grande maioria dos seres humanos simplesmente desfruta de soluções já disponibilizadas por um pequeno grupo de outros seres humanos que se deram ao trabalho real de enfrentar o problema e dar uma solução.

Todos os seres humanos são dotados de cérebros capazes de resolver problemas quase infinitos, mas em geral raramente se dão ao trabalho de fazê-lo.

O psicólogo austríaco Sigmund Freud analisou essa característica humana para evitar problemas e seguir o caminho mais fácil. Ele denominou essa tendência de Princípio do Prazer. Esse nome por si só já diz quase tudo. E mais: é um princípio quase universal na natureza, dentre os seres vivos.

Ninguém quer enfrentar problemas. Por que enfrentar o difícil se podemos ter o que desejamos pelo caminho mais fácil?

Assim, ao longo dos séculos, algumas centenas de seres humanos foram criando soluções para problemas humanos gerais de maneira que hoje a grande maioria das pessoas encontra-se em um modo de vida tal que podemos compará-lo ao da larva da borboleta. Elas vivem apenas como se fossem seres em um estágio para algo mais avançado, uma etapa não tão glamourosa quando ao da borboleta, mas necessária e real.

A maioria dos problemas humanos só pode ser solucionada mediante cooperação. Quase não há necessidade moderna que possa ser solucionada pelo próprio indivíduo. Fazemos as coisas das quais precisamos por meio de empreendimentos coletivos. Há organizações para tudo, e quase nada é feito fora de organizações.

Nas organizações, há a famosa "especialização do trabalho", tão bem relatada pelo economista Adam Smith, o pioneiro da ciência econômica. Nas organizações, os homens fazem apenas aquilo que precisa ser feito, e nada mais. E não precisa aprender mais nada além do que já sabe. Ele passa a ser uma peça de uma engrenagem.

É o homem livre para não ser uma peça dessa enorme maquinaria fria e indiferente à sua individualidade e sensibilidade?

É.

Ninguém precisa ser um empregado. Qualquer ser humano pode fazer o que quiser.

No entanto, pagará um preço alto pela sua liberdade ou independência: não desfrutará das facilidades que o resto da humanidade dispõe. O preço da rebeldia é a miséria.

Ainda assim, ninguém obriga ninguém a ser uma peça de uma engrenagem fria e insensível.

Logo, quem o faz, o faz livremente. Logo, é como um mercenário, um soldado profissional que vende seus serviços a uma causa que não lhe diz respeito, que não o motiva, nem o impulsiona. Luta apenas pelo dinheiro, e nada mais.

Se vende-se por dinheiro, para ter os benefícios materiais de um mundo egoísta, o homem moderno, agora um mercenário, nem por isso deixa de ser uma larva, uma lagarta que apenas usufrui das soluções que outros se deram ao trabalho de resolver.

Então, se bilhões e bilhões de humanos não são de fato humanos, mas apenas larvas mercenárias fazendo trabalho especializado em organizações em troca de dinheiro para pagar seus pequenos prazeres mundanos sem usar de fato seus poderosos cérebros para resolver problemas importantes, quem são os verdadeiros humanos?

Se o que define o homem é sua capacidade de pensar e resolver problemas, e biologicamente quase todos os seres humanos nascem com cérebros perfeitos e capazes de dar soluções para muitos tipos de problemas, por que todos esses seres humanos mentalmente perfeitos não são de fato humanos?

Há, entre os infinitos problemas que enfrentamos, duas categorias que podem ser definidas como sendo problemas do indivíduo e os problemas da espécie.

Trocar o pneu furado do carro é um problema para o indivíduo que terá que fazer o trabalho, mas não significa nada em termos tecnológicos, científicos e evolucionários. O pneu furado é parte de um processo maior de locomoção que sob o ponto de vista da espécie, poderia ser descartado se alguém, por exemplo, inventasse carros que flutuassem ou, melhor, inventasse um mecanismo seguro de teletransporte.

Temos milhões de pessoas reclamando de seus pneus furados, mas apenas algumas centenas delas realmente empenhadas em pensar o teletransporte.

Quem está realmente usando seus bilhões de neurônios tal como uma borboleta usa suas lindas asas? Os bilhões de seres mentalmente preguiçosos que optam pelo "princípio do prazer" ou o pensador solitário que se debruça nas madrugadas sobre coisas ditas impossíveis, impraticáveis ou irrealizáveis?

Lamentamos não termos tempo para nos preocuparmos com esses problemas maiores. Afinal, somos pobres mortais. Além do mais, para enfrentá-los é preciso talento, dom, genialidade, determinação, investimento de tempo, esforço mental e abnegação dos prazeres mundanos da vida dos quais não estamos dispostos a abrir mão. Além do mais, há organizações especialmente desenhadas para isso, para resolver esses problemas mais espinhosos, como a NASA, os laboratórios sofisticados das universidades, dos governos, das grandes empresas, os aceleradores de partículas que fazem coisas que sequer imaginamos.

Por que pensar nessas coisas complicadas e incompreensíveis?

A vida é curta e os prazeres mundanos são sedutores demais para que os deixemos de lado pelo trabalho de resolver problemas que de fato não são nossos, mas de gerações futuras que não sabemos se existirão.

E assim, vivemos nossas vidas de larvas.

Mas, então, um dia, uma noite, na verdade, olhamos com assombro para o vasto oceano de estrelas e nos perguntamos mesmo se aquilo tudo existe ou é apenas uma espécie de miragem colada no firmamento, como um cenário falso criado por algum deus brincalhão e de mau gosto para nos fazer de bobos.

O céu infinito, se for mesmo verdade, inquerimos, se for mesmo coalhado de planetas e estrelas e mundos sem vida e com vida, se esse céu for mesmo esse mistério que nos dizem os astrônomos, se ele permitir mesmo tantas possibilidades e promessas, não seria essa abundância infinita a solução para todos os nossos mais mundanos e corriqueiros problemas?

Há nele a resposta para tudo.

O que é a morte física de nossos corpos para civilizações muitíssimo mais avançadas que a nossa?

Poderíamos ser eternos, se tivéssemos acesso à essa fonte inesgotável de recursos e conhecimento.

Mas, então, é tarde, o sono chega, o lugar é escuro, faz um pouco de frio e precisamos dormir, porque amanhã há muito o que fazer: há uma reunião às nove da manhã, imperdível, e astronomia é assunto fora de cogitação.

Lagartas que somos, vamos dormir. 

Deixamos os problemas do cosmo e da eternidade para serem solucionados pelos humanos, que são borboletas.

A nós, larvas mercenárias, só interessa o comer da próxima refeição.

E, no entanto, somos definitivamente livres.

Como entender que nos recusemos a ser humanos?

Como entender que pareça mais prazeroso ser uma larva que uma borboleta?

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A fragilidade do fogo

Narram os livros de História, e os de Antropologia, ainda mais fecundos, que talvez a primeira grande conquista humana tenha sido o domínio do fogo.

Acenda uma vela: é simples. Tome a vela na mão, acenda um fósforo ou um isqueiro, ou, ainda, vá até o fogão da cozinha e aperte um botão e terá uma chama eletricamente induzida. Ponha o pavio apagado da vela na chama firme até ele acender. Depois, apague o fósforo, solte o dedo do botão do isqueiro ou gire o botão do fogão e extinga o fogo.

Há muita coisa a dizer sobre esses simples atos. Eles são enganosamente banais.

No Brasil há fósforos nos supermercados, isqueiros em qualquer botequim ou lojinha de esquina, e praticamente um fogão em cada casa. Nos carros, acendedores elétricos fazem o papel de gerar o fogo mediante a incandescência de finas folhas de metal em cadeia.

O fogo, hoje, é frugal. Surge por algum espaço de tempo, por vezes alguns segundos, por vezes por meia hora, uma hora, no máximo, e cessa secamente, sem deixar rastros.

Prive-me, no entanto, dessas banalidades tecnológicas e direi a ti que não sei como se faz o fogo.

Quer dizer: sei teoricamente que nossos ancestrais usavam faíscas de pedras se chocando entre si, ou o calor gerado pelo atrito de gravetos cuidadosamente posicionados sobre plumas e pelugem, ou ainda que o recolhiam de incêndios naturais diversos, provocados por raios ou vulcões, ou pelo calor de alguma fonte sobre a qual não tinham controle. Sei ainda que uma lupa bem posicionada pode focar raios de luz de tal maneira que o calor gerado provoca o fogo.

Mas, sem o fósforo, o isqueiro ou o fogão, não sei fazer o fogo.

Nunca tomei em minhas mãos duas pedras e as bati em busca de faíscas. Nunca peguei gravetos secos no chão e fiz sair o calor e o fogo deles, nem por um único momento. No inverno, uso um aquecedor elétrico. No carro, uso aquecedor que obtém calor que vem do motor. 

Sem eletricidade, passo frio. Sem petróleo, passo frio ou calor. Sem fósforos, não acendo o fogão a gás. Sem isqueiro, não acendo velas, ou queimo papéis. Sem fogão, não cozinho meu almoço, nem fervo meu leite.

O saber prático sobre o fogo tirado das pedras está, não perdido, mas adormecido na humanidade civilizada a mais ou menos uns dois séculos, pelo menos.

No Brasil todo, temos duas ou três fábricas de fósforos e isqueiros. São empresas multinacionais que dominam o mercado. Provavelmente nem fabricam nada no país. Alguma fábrica em algum lugar do mundo produz bilhões de caixas de fósforos e isqueiros que abastecem todos os continentes. Nos sites dessas empresas, elas até relacionam endereços de fábricas no país, mas vá até esses endereços e não verá nada. São meramente endereços para atender a uma burocracia governamental que exige que tenham algum endereço registrado. O endereço existe. A fábrica propriamente dita, não.

Não tenho a mínima ideia de onde vem algo que me é absolutamente essencial.

Há centenas de maneiras de se gerar o fogo e ainda mais centenas de maneiras de se substituir o fogo e sua utilidade. O forno elétrico e o forno micro-ondas substituem o fogo no cozimento dos alimentos. A lâmpada elétrica substitui a luz do fogo. As casas nos protegem da ameaça dos outros animais humanos, já que praticamente não temos mais ameaças de ursos, lobos e onças. Fornos gigantescos fundem metais em usinas. Tratores e motosserras fazem a limpeza do terreno que o fogo fazia.

Mas sempre que me lembro de que por muitos milhares de anos tudo se resumia ao atritar de pedras, ao atritar de gravetos e à sorte dos raios, sinto um temor ancestral por não ter essa habilidade tão útil. Não sei também usar uma lança contra um alvo vivo ou inanimado, nem sei pescar sem anzóis de metal industrialmente fabricados. Não sei andar sem sapatos sem ferir os pés e não sei subir em uma árvore muito grande. Não sei trançar fibras nem colher ramas e bagos. Não sei quando uma erva é mortal ou comestível. Não sei como conservar um pedaço de carne sem o uso de produtos químicos e geladeira, e não sei como não ter cáries dentárias sem usar escovas de dente e fio dental. Não sei plantar, nem conheço as sementes que precisam ser plantadas. Não sei quando colher, nem como extrair o que é comestível daquilo que foi colhido. Não sei domesticar um búfalo, nem um camelo, nem uma rena. Nem sei como ordenhar uma cabra.

Jamais espere de mim que eu faça um queijo ou uma carne defumada.

Eu não sei fazer essas coisas.

Penso que tenho quase meio século de vida e não sei quase nada.

Frágil não é o fogo.

Frágil sou eu.

O filósofo, pela primeira vez

Dizem por aí que o primeiro contato que temos com a Filosofia é através dos gregos, dos velhos filósofos que vieram antes de Sócrates.

Não para mim.

Eu tinha meus sete, oito anos e nunca tinha ouvido falar nem de Filosofia, nem de filósofos. Mas vivíamos nos anos 70, época de ditadura, de Guerra Fria, de pobreza generalizada e de ignorância continental.

Morávamos na pequena Tujuguaba, que sequer tinha banca de jornais. O saber por ali se concentrava na pequena escola estadual, com suas poucas centenas de livros inacessíveis, mas ainda assim, eu era jovem demais para entender o que eram os livros.

Naquela época, pessoas que moravam em pequenas cidades iam estudar em cidades maiores, onde havia faculdades e universidades. Tujuguaba, que é parte do município de Conchal, continua tendo sua pequena escola estadual. Conchal, por sua vez, é maior e tem curso secundário, mas não tinha na época e não tem até hoje nenhuma faculdade.

Os jovens conchalenses iam às cidades da redondeza cursar faculdade: Limeira, Mogi-Mirim, Campinas, Piracicaba, e alguns mais ousados, até São Paulo e além.

Íamos sempre passear de Tujuguaba até Conchal. Íamos visitar parentes, amigos de meus pais, íamos às festas, a bares e restaurantes, às praças e aos clubes. Conchal era para nós, pequenos tujuguabanos, uma metrópole.

E um dia meu pai nos apresentou Gera, um amigo, na bela praça que há em frente à Prefeitura, próximo à linda fonte de águas magicamente coloridas de luzes. O nome, Gera, era apenas o apelido decorrente da abreviatura de seu nome, Geraldo.

Gera era estudante de Filosofia em algum lugar que não faço ideia. Gera estava provavelmente de férias, porque nem ficava mais em Conchal, estudante que era, e que se virava sozinho no mundo, nos campus, nas grandes cidades.

Gera era magro, alto, tinha os olhos meio elétricos e tinha o cabelo longo. E mais: tinha um pássaro preto de estimação que vivia em seu ombro. Gera tinha a camiseta branca de malha toda suja de titica de passarinho.

Gera era quase filósofo.

Se era louco, não sei, mas pareceu-me o tipo mais estranho, ousado e sofisticado que eu tinha visto até então. Era um tipo de alienígena que nos impressionava. Ao menos a mim ele impressionou fortemente, a mim, um garoto de sete ou oito anos, que nunca tinha visto um estudante de faculdade, e ainda mais de Filosofia.

Meus pais conversaram alguns minutos com Gera e a vida seguiu em frente.

Os anos se passaram.

Gera mora logo ali, perto da casa de meu irmão, mas ao mesmo tempo perto de tudo, porque agora Conchal é apenas Conchal, um lugarzinho pequenino onde não há realmente distâncias. Gera é o Gera para todo mundo, e como todo mundo conhece todo mundo, Gera é meio lenda, meio normal, como todo cidadão das pequenas cidades.

Pai de família, tem belas filhas e uma esposa. Não dá aulas de Filosofia e pelo que pouco sei dele, é muito boa praça e grande amigo de meus irmãos. Certamente seríamos muito bons amigos se eu morasse em Conchal.

Influenciamos e somos influenciados sem que saibamos como, quando e porquê. Mas certamente quase nunca saberemos quem influenciamos, porque nossas marcas ficam nas mentes das pessoas de uma maneira que jamais poderemos vislumbrar, a menos que elas nos digam que estamos lá, nas suas memórias e nos seus modos de vida.

Ousadia juvenil, espírito de uma época, contemporaneidade com o espírito do tempo, abertura de espírito, curiosidade à flor da pele, riscos calculados diante das ameaças, perigos e vícios da vida, poder sobre outros seres, poder e simbiose com outras espécies de seres, visual despojado, roupas avançadamente simples, e a Filosofia pela frente, um cosmo infinito a ser desvendado. Que mistérios estudaria Gera, nos infinitos livros de Filosofia das longínquas faculdades? 

A imagem de um cidadão que em seu tempo foi e acho que ainda é tudo que se pode ser no seu meio. Essa foi a imagem do jovem Gera que se fixou em minha mente.

Desde então, Filosofia era para mim os mistérios de Gera, e Gera, a encarnação terrena desses mistérios filosóficos.

O Gera homem, de carne e ossos, passará. O Gera de cabelos longos, de pássaro no ombro e ideias incríveis na cabeça, jamais,

Nem em Conchal, nem em qualquer outro local do mundo ou além.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O gelo, o fogo e a areia

Estamos, nós, paulistas e paulistanos, quase formalmente em estado de racionamento de água. Em que pese a seriedade da situação, inimaginável a poucos anos ou mesmo meses atrás, não é difícil de aceitar a ideia de que nós, brasileiros, vivemos em um país imenso sujeito a grandes variações climáticas. 

Enchentes, frentes frias, secas, queimadas, avanço do oceano e desmatamento são temas relativamente frequentes em nosso noticiário.

O grande drama é que agora o risco de escassez de água chega à área mais densamente povoada do país, senão uma das mais povoadas do mundo.

Não falarei sobre culpa, ainda que haja evidentemente um componente humano no processo, seja ele o de excesso de consumo, falta de planejamento e  assoreamento de rios. Ninguém em sã consciência trabalharia ativa ou passivamente para gerar esse resultado. O clima em si é o grande fator incontrolável, e espero que tudo se normalize em alguns meses, seja pela queda das chuvas, seja pela transposição de rios, ou outra solução qualquer.

Não morreremos de sede, nem haverá uma catástrofe. A humanidade já sobreviveu a esse problema antes e sobreviverá agora.

Se teremos manifestações, quebra-quebra e prejuízos econômicos, parece que isso dependerá do espírito de compreensão do povo e do envolvimento ativo de todos. Afinal, não se pode esperar que o governo resolva absolutamente tudo. 

Mas, eu tenho feito muitos pequenos comentários nesse blog a respeito do problema ecológico, e acho que há alguns detalhes interessantes que precisam ser realçados.

Um dia desses eu assisti ao filme Interestelar, mais um deles, obviamente de ficção científica.

Hollywood tem tentado capitalizar sobre o problema climático e como gosto do assunto, seja o do clima, seja o da ficção científica, sempre que posso, assisto a esses filmes mais grandiloquentes e catastróficos.


Em O Dia Depois de Amanhã, a ameaça é o frio intenso que surge de uma interrupção de uma corrente marítima e acaba causando um gigantesco esfriamento na América do Norte, com tufões e furacões trazendo frio da alta atmosfera e criando uma nova era glacial no mundo. 

Em Presságio, uma anomalia no funcionamento do Sol é detectada e condenará o planeta Terra a sofrer uma rajada de calor que acabará com a civilização.

Em Interestelar, parece que houve um entendimento, uma compreensão por parte de roteiristas e produtores quanto à factibilidade de catástrofes climáticas. Assim, eles introduziram a seca, a morte de plantas, a erosão do solo, as pragas agrícolas, as tempestades de areia como pesadelo futuro. Foram espertos ao introduzir imagens de colheitadeiras e tratores drones, guiados por computador, sem motoristas, dando a entender que em um futuro árido assim, nós, humanos, ainda teríamos alguns meios com os quais lutar contra uma tragédia inevitável, mas postergável por mais algumas décadas antes do colapso final.

Um cidadão razoavelmente prudente deve ter percebido ao longo dos anos como a mídia passou a dar crédito às ameaças ecológicas e parece resignado ao fato de que algo de ruim acabaria acontecendo conosco mais dia, menos dia. Esse dia está chegando e parece que não há muito o que se fazer.

Não, não veremos o Estado de São Paulo sendo consumido ano a ano por dunas de areia varridas pelos ventos escaldantes do aquecimento global.

Mudanças climáticas sempre existiram. A espécie humana surgiu em um planeta inerentemente variável. Nossos ancestrais já enfrentaram calor maior que este que vivenciamos, enfrentou muito mais frio ainda, com glaciações intermináveis, e a areia cobre e sempre cobriu grande parte do mundo sem que tenha impedido o ir e vir do homem ao longo dos milênios.

A única coisa que o planeta nunca vivenciou foi a existência simultânea de 7 bilhões de animais consumidores dos mais variados recursos físicos disponíveis.

Vivemos sim um período com um número de seres humanos explosivo, mas nada indica que haja uma catástrofe logo ali, no ano que vem.

Teremos desafios, é certo, e precisaremos reajustar nosso modo de vida.

Mais que isso, nós brasileiros teremos de aprender a nos ver como um povo como qualquer outro, um povo sujeito às mesmas vulnerabilidades que qualquer outro. Um povo que precisa aprender a ver a frase "Deus é brasileiro" como um ponto fraco, e não como uma bênção e um patuá que o protege, como se dotado de um corpo fechado contra males de todos os tipos.

Essa frase tem nos cegado ao longo das décadas. 

Agora, ou abrimos os olhos ou eles se encherão de areia.

Brasileiros: bem-vindos à realidade do mundo!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Agnus Dei

Música magistral!

Parece ter sido composta no século XII, em algum mosteiro medieval, mas é de 2004, de Howard Goodall, compositor inglês.

O Cordeiro de Deus!

Louvado seja!


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A riqueza dos acervos digitais

Eu disse nesta postagem que um blog desatualizado é como um jornal velho daqueles que usamos nos açougues, exceto que não podemos embrulhar carne nele.

Essa constatação contém aparentemente um certo desdém para com os jornais tradicionais, que uma vez comprados, quer sejam lidos ou não, perdem, se não a validade, pelo menos o interesse por parte de seus consumidores e são rapidamente descartados das mais diversas maneiras.

Eu cito os açougues por mero gracejo. Antigamente, os açougues eram pequenos estabelecimentos que de fato usavam jornais velhos para embrulhar carne. Era uma forma de reciclagem razoavelmente correta. A carne era embrulhada primeiro em uma fina película de plástico e depois no jornal. Em cidades pequenas, isso era e ainda creio que seja coisa comum. 

Chegando em casa, as pessoas davam os mais diversos destinos aos jornais: reutilizavam-no para novos embrulhos, jogavam fora, ou mesmo liam alguma notícia velha por mera curiosidade.

Este é o ponto: que valor tem uma notícia velha de um jornal qualquer para um eventual leitor que tope com ela por mero acaso?

Em geral, nenhum valor. Afinal, há dezenas, centenas, milhares de empresas que produzem notícias impressas mundo afora. Logo, produzir notícia é um negócio como qualquer outro, exceto que os jornais precisam produzir em geral mais notícias que outras fontes de informação, como livros e revistas, porque circulam mais frequentemente. Mas nem tudo no mundo é digno de ser noticiado. Logo, temos que aceitar que nem todas as notícias veiculadas em um jornal de frequência diária, por exemplo, possui a mesma importância, urgência ou relevância. Há muita coisa trivial, inócua, dispensável.

A curto prazo, são informações de alguma utilidade, mas passado um certo tempo, que pode ser um mês, um semestre ou um ano, vários anos, passam a ser meros traços no papel. Ninguém se dá ao trabalho ou à perda de tempo de ler uma página trivial de um jornal de cinco anos atrás. Talvez a manchete da página principal tenha algum sentido ainda, evoque algo no presente, mas o resto muito provavelmente não.

Mas, o tempo passa e aquela pequena notícia inexpressível ganha um novo tom. Depois de um século, um simples anúncio de compra ou venda passa a incorporar os cacoetes de uma época, e então, já não é o caso de ter valor prático, mas passa a ter valor histórico. Registra os costumes de um momento não mais acessível pelas pessoas vivas. As pessoas que leram essa pequena notícia no dia em que foi publicada já estão todas mortas a muito tempo. Só a notícia sobrevive, como uma pegada fóssil de um ser que não pudemos conhecer em vida.

Mas, se uma notícia hoje tida como trivial não puder perdurar para além de uma década? E se todos os jornais publicados virarem embrulhos de açougue e depois acabarem nas latas de lixo? Como as gerações futuras poderão saber como nós hoje vivemos e pensamos?

Daí a importância dos acervos. 

Jornais de grande circulação e que existem a longos anos, alguns deles centenários, sabem da importância de se preservar seu trabalho na forma de um acervo. Muitas empresas publicadoras de material impresso, como jornais e revistas, já tiveram o trabalho de disponibilizar seus acervos ao público por meio da internet.

No Brasil, só como um exemplo, temos acervos digitais parciais ou completos, públicos, gratuitos ou pagos, dos principais veículos de comunicação, tais como a jornal O Estado de São Paulo, a revista Superinteressante, a revista Exame, a revista Veja, dentre outros.

Acervos são coisas fascinantes. A quantidade de informação é enorme. O registro do conhecimento se dá de maneira cumulativa, e em geral, a notícia que é trivial e inexpressiva isoladamente ganha relevo quando faz parte de um conjunto histórico maior. Passamos a vê-la como parte de um todo no tempo, como uma célula em um corpo vivo que flui do passado para o presente e mira o futuro, e essa visão nos é de uma riqueza ímpar, porque, afinal, o todo é rico. Logo, suas partes também o são.

Mas, não era cada uma dessas milhares de notícias uma mera tira de papel sem sentido e destinada somente ao lixo e ao fogo, quando não ao embrulho das linguiças e toucinhos?

Não somos capazes de consumir esses acervos. Sinto-me como alguém que tem que dragar um oceano com o auxílio apenas de uma caneca. Simplesmente não podemos ler tudo, entender tudo, consumir tudo.

E, quando penso nas coisas que já li ao longo da vida, recordo-me de revistas e jornais que não circulam mais a muito tempo, e que não tiveram a sorte de ter seus conteúdos convertidos em acervos digitais.

Há centenas de empresas que publicavam jornais, revistas e livros que simplesmente fecharam as portas, faliram ou deixaram de existir sem ter tido o trabalho de montar, preservar e legar seus acervos para a posteridade.

Isso é uma perda, certamente, e talvez parcialmente irreparável.

Digo parcialmente porque qualquer cidadão hoje pode digitalizar uma revista velha e disponibilizá-la na internet, embora não possa agregá-la a um acervo, a um conjunto maior que contenha outros volumes da mesma publicação, nem possua o interesse ou tempo para fazer este trabalho. 

Ainda assim, vez por outra encontro sites onde apaixonados por determinados assuntos juntam-se na internet para compartilharem conteúdo fora de circulação. Amantes, por exemplo, da eletrônica digitalizam suas coleções particulares de revistas antigas, algumas de quase um século atrás, e organizam esse material de maneira adequada, tal como faria o publicador original se tivesse que montar seu acervo hoje.

Esse é um trabalho nobre e gratificante.

Creio que chegará um tempo em que grande parte daquilo que o mundo publicou nos últimos cem anos estará disponível em acervos digitais.

Com que olhos nos olharão as gerações futuras quando se depararem naturalmente com bilhões de terabites de conteúdo infinito de publicações de todos os tipos, num oceano inesgotável de informação e história?

Não sei, mas talvez haja alguma reverência, algum assombro, do tipo que sentimos quando olhamos os milhares de livros de uma grande biblioteca pública, quando, olhando cada uma das lombadas de uma pequena fração de uma prateleira qualquer, passamos a perceber que nem mesmo uma vida de mil anos nos permitiria ler as coisas que gostaríamos de ler, se é que ler seja uma de nossas paixões.

Ou você não vê grandeza em uma biblioteca?

Então talvez veja numa discoteca, ou numa videoteca, ou numa pinacoteca, ou qualquer outra coleção de coisas feitas pelo homem e que pode ser objeto de curiosidade ou desejo por parte de alguém.

Daí talvez o sucesso da série de livros sobre as mil coisas para se ler, fazer, ouvir, conhecer ou comer antes de morrer.

A vastidão de opções nos fascina.

A abundância, agora podemos nos regozijar, existe, afinal, ao menos para um seleto grupo de paixões.

Talvez não vivamos no melhor dos mundos, mas certamente não vivemos no pior.

De fome de saber e da falta deste é que não pereceremos.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Objetos que caem

Todos os pequenos objetos que temos ao alcance das mãos podem, se permitirmos, cair no chão sem a menor dificuldade. Eles caem às vezes por descuido. A queda das coisas físicas é uma coisa banal e não merece muita consideração maior, correto?

Então, um dia qualquer você está tranquilo em casa, sozinho, e de repente, ouve o som de um objeto caindo.

Imediatamente você tem seus sentidos despertados: o que caiu? E mais: por que caiu?

Coisas não caem sem um motivo. Todas as coisas que temos em casa estão em geral razoavelmente bem apoiadas em alguma superfície estável. Ainda assim, você não entra em pânico quando algo cai porque você sabe que em meio a centenas de pequenos objetos que temos em casa, alguns não estão suficientemente bem apoiados, bem escorados, bem afixados, e por causa de um vento, um sacolejo, um peso extra, esses objetos mal fixados podem cair sem aviso prévio, provocando susto, surpresa, e por que não, às vezes, uma pontada de medo.

O que o medo tem a ver com a queda dos corpos?

Por que negar que sentimos uma fisgada de medo quando algo cai sem que saibamos o porquê de sua queda?

Mas, o medo é algo irracional, e então, você decide ver o que aconteceu.

Um copo deslizou sobre uma fina película de água sobre o mármore da pia lisa e acabou caindo junto à louça suja. Um prendedor soltou-se, deixando cair um chinelo do varal de roupas. Afinal, um prendedor de plástico tem um mola em seu mecanismo, e essa mola faz pressão ininterruptamente durante a vida toda do prendedor. Ora, o plástico resseca-se com o tempo, com o sol e com produtos químicos e água. Um dia, o plástico trinca e parte, pedaços dele espirram para os lados, a mola voa, e o chinelo cai sobre a escova e sobre uma caixa de sabão em pó mais abaixo, na pia. Pronto: temos a explicação para uma queda inesperada, porém compreensível, e até razoável depois de sabermos o motivo dela.

Mas, e quando as coisas não funcionam desta maneira?

E quando um objeto cai sem uma explicação simples?

E quando um objeto parece, por uma causa desconhecida, comportar-se como que se desobedecesse às leis da Física?

Nessa hora, o coração gela, a boca resseca-se e o medo golpeia fundo.

Por que a quebra de uma das leis da Física nos provoca tanto pavor?

Por que tememos tanto o inexplicável?

Atrás de cada objeto que cai, há uma possibilidade remota, mas real, de que estejamos sob a ameaça de uma quebra das regras da normalidade. Mas sabemos que nada acontece por acaso, que objetos não têm vida nem vontade próprias. Eles não decidem cair. 

Eles são derrubados.

Atrás de cada objeto que cai, esconde-se o horror do desconhecido.

O que mais pode derrubar os objetos, senão as leis da Física?

Quão horrorosas podem ser as possibilidades se as leis da Física podem ser de fato quebradas?

Elas podem ser quebradas?

Ou não conhecemos assim tão bem as leis da Física?

Atrás de cada objeto que cai, há um mundo de saber e conhecimento prestes a cair junto.

A civilização moderna, com sua ciência e sua tecnologia, equilibra-se debilmente como um prato rodando sobre uma vara nas mãos de um hábil malabarista.

Um solavanco inesperado e tudo vem abaixo.

O que você pensaria se, depois de ter colocado um objeto qualquer em um lugar estável, poucos minutos depois, ao virar as costas, ouvisse ele caindo de uma maneira absolutamente impossível pelas leis da Física?

Atrás de cada objeto que cai, há um abismo de mistérios.

Eu suspeito que não conhecemos o que há nesse abismo.

Eu suspeito que mal conhecemos as leis da Física.

Eu tentarei explicar essa minha suspeita.

Prometo que tentarei.

Aqui!