Narram os livros de História, e os de Antropologia, ainda mais fecundos, que talvez a primeira grande conquista humana tenha sido o domínio do fogo.
Acenda uma vela: é simples. Tome a vela na mão, acenda um fósforo ou um isqueiro, ou, ainda, vá até o fogão da cozinha e aperte um botão e terá uma chama eletricamente induzida. Ponha o pavio apagado da vela na chama firme até ele acender. Depois, apague o fósforo, solte o dedo do botão do isqueiro ou gire o botão do fogão e extinga o fogo.
Há muita coisa a dizer sobre esses simples atos. Eles são enganosamente banais.
No Brasil há fósforos nos supermercados, isqueiros em qualquer botequim ou lojinha de esquina, e praticamente um fogão em cada casa. Nos carros, acendedores elétricos fazem o papel de gerar o fogo mediante a incandescência de finas folhas de metal em cadeia.
O fogo, hoje, é frugal. Surge por algum espaço de tempo, por vezes alguns segundos, por vezes por meia hora, uma hora, no máximo, e cessa secamente, sem deixar rastros.
Prive-me, no entanto, dessas banalidades tecnológicas e direi a ti que não sei como se faz o fogo.
Quer dizer: sei teoricamente que nossos ancestrais usavam faíscas de pedras se chocando entre si, ou o calor gerado pelo atrito de gravetos cuidadosamente posicionados sobre plumas e pelugem, ou ainda que o recolhiam de incêndios naturais diversos, provocados por raios ou vulcões, ou pelo calor de alguma fonte sobre a qual não tinham controle. Sei ainda que uma lupa bem posicionada pode focar raios de luz de tal maneira que o calor gerado provoca o fogo.
Mas, sem o fósforo, o isqueiro ou o fogão, não sei fazer o fogo.
Nunca tomei em minhas mãos duas pedras e as bati em busca de faíscas. Nunca peguei gravetos secos no chão e fiz sair o calor e o fogo deles, nem por um único momento. No inverno, uso um aquecedor elétrico. No carro, uso aquecedor que obtém calor que vem do motor.
Sem eletricidade, passo frio. Sem petróleo, passo frio ou calor. Sem fósforos, não acendo o fogão a gás. Sem isqueiro, não acendo velas, ou queimo papéis. Sem fogão, não cozinho meu almoço, nem fervo meu leite.
O saber prático sobre o fogo tirado das pedras está, não perdido, mas adormecido na humanidade civilizada a mais ou menos uns dois séculos, pelo menos.
No Brasil todo, temos duas ou três fábricas de fósforos e isqueiros. São empresas multinacionais que dominam o mercado. Provavelmente nem fabricam nada no país. Alguma fábrica em algum lugar do mundo produz bilhões de caixas de fósforos e isqueiros que abastecem todos os continentes. Nos sites dessas empresas, elas até relacionam endereços de fábricas no país, mas vá até esses endereços e não verá nada. São meramente endereços para atender a uma burocracia governamental que exige que tenham algum endereço registrado. O endereço existe. A fábrica propriamente dita, não.
Não tenho a mínima ideia de onde vem algo que me é absolutamente essencial.
Há centenas de maneiras de se gerar o fogo e ainda mais centenas de maneiras de se substituir o fogo e sua utilidade. O forno elétrico e o forno micro-ondas substituem o fogo no cozimento dos alimentos. A lâmpada elétrica substitui a luz do fogo. As casas nos protegem da ameaça dos outros animais humanos, já que praticamente não temos mais ameaças de ursos, lobos e onças. Fornos gigantescos fundem metais em usinas. Tratores e motosserras fazem a limpeza do terreno que o fogo fazia.
Mas sempre que me lembro de que por muitos milhares de anos tudo se resumia ao atritar de pedras, ao atritar de gravetos e à sorte dos raios, sinto um temor ancestral por não ter essa habilidade tão útil. Não sei também usar uma lança contra um alvo vivo ou inanimado, nem sei pescar sem anzóis de metal industrialmente fabricados. Não sei andar sem sapatos sem ferir os pés e não sei subir em uma árvore muito grande. Não sei trançar fibras nem colher ramas e bagos. Não sei quando uma erva é mortal ou comestível. Não sei como conservar um pedaço de carne sem o uso de produtos químicos e geladeira, e não sei como não ter cáries dentárias sem usar escovas de dente e fio dental. Não sei plantar, nem conheço as sementes que precisam ser plantadas. Não sei quando colher, nem como extrair o que é comestível daquilo que foi colhido. Não sei domesticar um búfalo, nem um camelo, nem uma rena. Nem sei como ordenhar uma cabra.
Jamais espere de mim que eu faça um queijo ou uma carne defumada.
Eu não sei fazer essas coisas.
Penso que tenho quase meio século de vida e não sei quase nada.
Frágil não é o fogo.
Frágil sou eu.
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