Eu disse nesta postagem que um blog desatualizado é como um jornal velho daqueles que usamos nos açougues, exceto que não podemos embrulhar carne nele.
Essa constatação contém aparentemente um certo desdém para com os jornais tradicionais, que uma vez comprados, quer sejam lidos ou não, perdem, se não a validade, pelo menos o interesse por parte de seus consumidores e são rapidamente descartados das mais diversas maneiras.
Eu cito os açougues por mero gracejo. Antigamente, os açougues eram pequenos estabelecimentos que de fato usavam jornais velhos para embrulhar carne. Era uma forma de reciclagem razoavelmente correta. A carne era embrulhada primeiro em uma fina película de plástico e depois no jornal. Em cidades pequenas, isso era e ainda creio que seja coisa comum.
Chegando em casa, as pessoas davam os mais diversos destinos aos jornais: reutilizavam-no para novos embrulhos, jogavam fora, ou mesmo liam alguma notícia velha por mera curiosidade.
Este é o ponto: que valor tem uma notícia velha de um jornal qualquer para um eventual leitor que tope com ela por mero acaso?
Em geral, nenhum valor. Afinal, há dezenas, centenas, milhares de empresas que produzem notícias impressas mundo afora. Logo, produzir notícia é um negócio como qualquer outro, exceto que os jornais precisam produzir em geral mais notícias que outras fontes de informação, como livros e revistas, porque circulam mais frequentemente. Mas nem tudo no mundo é digno de ser noticiado. Logo, temos que aceitar que nem todas as notícias veiculadas em um jornal de frequência diária, por exemplo, possui a mesma importância, urgência ou relevância. Há muita coisa trivial, inócua, dispensável.
A curto prazo, são informações de alguma utilidade, mas passado um certo tempo, que pode ser um mês, um semestre ou um ano, vários anos, passam a ser meros traços no papel. Ninguém se dá ao trabalho ou à perda de tempo de ler uma página trivial de um jornal de cinco anos atrás. Talvez a manchete da página principal tenha algum sentido ainda, evoque algo no presente, mas o resto muito provavelmente não.
Mas, o tempo passa e aquela pequena notícia inexpressível ganha um novo tom. Depois de um século, um simples anúncio de compra ou venda passa a incorporar os cacoetes de uma época, e então, já não é o caso de ter valor prático, mas passa a ter valor histórico. Registra os costumes de um momento não mais acessível pelas pessoas vivas. As pessoas que leram essa pequena notícia no dia em que foi publicada já estão todas mortas a muito tempo. Só a notícia sobrevive, como uma pegada fóssil de um ser que não pudemos conhecer em vida.
Mas, se uma notícia hoje tida como trivial não puder perdurar para além de uma década? E se todos os jornais publicados virarem embrulhos de açougue e depois acabarem nas latas de lixo? Como as gerações futuras poderão saber como nós hoje vivemos e pensamos?
Daí a importância dos acervos.
Jornais de grande circulação e que existem a longos anos, alguns deles centenários, sabem da importância de se preservar seu trabalho na forma de um acervo. Muitas empresas publicadoras de material impresso, como jornais e revistas, já tiveram o trabalho de disponibilizar seus acervos ao público por meio da internet.
No Brasil, só como um exemplo, temos acervos digitais parciais ou completos, públicos, gratuitos ou pagos, dos principais veículos de comunicação, tais como a jornal O Estado de São Paulo, a revista Superinteressante, a revista Exame, a revista Veja, dentre outros.
Acervos são coisas fascinantes. A quantidade de informação é enorme. O registro do conhecimento se dá de maneira cumulativa, e em geral, a notícia que é trivial e inexpressiva isoladamente ganha relevo quando faz parte de um conjunto histórico maior. Passamos a vê-la como parte de um todo no tempo, como uma célula em um corpo vivo que flui do passado para o presente e mira o futuro, e essa visão nos é de uma riqueza ímpar, porque, afinal, o todo é rico. Logo, suas partes também o são.
Mas, não era cada uma dessas milhares de notícias uma mera tira de papel sem sentido e destinada somente ao lixo e ao fogo, quando não ao embrulho das linguiças e toucinhos?
Não somos capazes de consumir esses acervos. Sinto-me como alguém que tem que dragar um oceano com o auxílio apenas de uma caneca. Simplesmente não podemos ler tudo, entender tudo, consumir tudo.
E, quando penso nas coisas que já li ao longo da vida, recordo-me de revistas e jornais que não circulam mais a muito tempo, e que não tiveram a sorte de ter seus conteúdos convertidos em acervos digitais.
Há centenas de empresas que publicavam jornais, revistas e livros que simplesmente fecharam as portas, faliram ou deixaram de existir sem ter tido o trabalho de montar, preservar e legar seus acervos para a posteridade.
Isso é uma perda, certamente, e talvez parcialmente irreparável.
Digo parcialmente porque qualquer cidadão hoje pode digitalizar uma revista velha e disponibilizá-la na internet, embora não possa agregá-la a um acervo, a um conjunto maior que contenha outros volumes da mesma publicação, nem possua o interesse ou tempo para fazer este trabalho.
Ainda assim, vez por outra encontro sites onde apaixonados por determinados assuntos juntam-se na internet para compartilharem conteúdo fora de circulação. Amantes, por exemplo, da eletrônica digitalizam suas coleções particulares de revistas antigas, algumas de quase um século atrás, e organizam esse material de maneira adequada, tal como faria o publicador original se tivesse que montar seu acervo hoje.
Esse é um trabalho nobre e gratificante.
Creio que chegará um tempo em que grande parte daquilo que o mundo publicou nos últimos cem anos estará disponível em acervos digitais.
Com que olhos nos olharão as gerações futuras quando se depararem naturalmente com bilhões de terabites de conteúdo infinito de publicações de todos os tipos, num oceano inesgotável de informação e história?
Não sei, mas talvez haja alguma reverência, algum assombro, do tipo que sentimos quando olhamos os milhares de livros de uma grande biblioteca pública, quando, olhando cada uma das lombadas de uma pequena fração de uma prateleira qualquer, passamos a perceber que nem mesmo uma vida de mil anos nos permitiria ler as coisas que gostaríamos de ler, se é que ler seja uma de nossas paixões.
Ou você não vê grandeza em uma biblioteca?
Então talvez veja numa discoteca, ou numa videoteca, ou numa pinacoteca, ou qualquer outra coleção de coisas feitas pelo homem e que pode ser objeto de curiosidade ou desejo por parte de alguém.
Daí talvez o sucesso da série de livros sobre as mil coisas para se ler, fazer, ouvir, conhecer ou comer antes de morrer.
A vastidão de opções nos fascina.
A abundância, agora podemos nos regozijar, existe, afinal, ao menos para um seleto grupo de paixões.
Talvez não vivamos no melhor dos mundos, mas certamente não vivemos no pior.
De fome de saber e da falta deste é que não pereceremos.
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