Dizem por aí que o primeiro contato que temos com a Filosofia é através dos gregos, dos velhos filósofos que vieram antes de Sócrates.
Não para mim.
Eu tinha meus sete, oito anos e nunca tinha ouvido falar nem de Filosofia, nem de filósofos. Mas vivíamos nos anos 70, época de ditadura, de Guerra Fria, de pobreza generalizada e de ignorância continental.
Morávamos na pequena Tujuguaba, que sequer tinha banca de jornais. O saber por ali se concentrava na pequena escola estadual, com suas poucas centenas de livros inacessíveis, mas ainda assim, eu era jovem demais para entender o que eram os livros.
Naquela época, pessoas que moravam em pequenas cidades iam estudar em cidades maiores, onde havia faculdades e universidades. Tujuguaba, que é parte do município de Conchal, continua tendo sua pequena escola estadual. Conchal, por sua vez, é maior e tem curso secundário, mas não tinha na época e não tem até hoje nenhuma faculdade.
Os jovens conchalenses iam às cidades da redondeza cursar faculdade: Limeira, Mogi-Mirim, Campinas, Piracicaba, e alguns mais ousados, até São Paulo e além.
Íamos sempre passear de Tujuguaba até Conchal. Íamos visitar parentes, amigos de meus pais, íamos às festas, a bares e restaurantes, às praças e aos clubes. Conchal era para nós, pequenos tujuguabanos, uma metrópole.
E um dia meu pai nos apresentou Gera, um amigo, na bela praça que há em frente à Prefeitura, próximo à linda fonte de águas magicamente coloridas de luzes. O nome, Gera, era apenas o apelido decorrente da abreviatura de seu nome, Geraldo.
Gera era estudante de Filosofia em algum lugar que não faço ideia. Gera estava provavelmente de férias, porque nem ficava mais em Conchal, estudante que era, e que se virava sozinho no mundo, nos campus, nas grandes cidades.
Gera era magro, alto, tinha os olhos meio elétricos e tinha o cabelo longo. E mais: tinha um pássaro preto de estimação que vivia em seu ombro. Gera tinha a camiseta branca de malha toda suja de titica de passarinho.
Gera era quase filósofo.
Se era louco, não sei, mas pareceu-me o tipo mais estranho, ousado e sofisticado que eu tinha visto até então. Era um tipo de alienígena que nos impressionava. Ao menos a mim ele impressionou fortemente, a mim, um garoto de sete ou oito anos, que nunca tinha visto um estudante de faculdade, e ainda mais de Filosofia.
Meus pais conversaram alguns minutos com Gera e a vida seguiu em frente.
Os anos se passaram.
Gera mora logo ali, perto da casa de meu irmão, mas ao mesmo tempo perto de tudo, porque agora Conchal é apenas Conchal, um lugarzinho pequenino onde não há realmente distâncias. Gera é o Gera para todo mundo, e como todo mundo conhece todo mundo, Gera é meio lenda, meio normal, como todo cidadão das pequenas cidades.
Pai de família, tem belas filhas e uma esposa. Não dá aulas de Filosofia e pelo que pouco sei dele, é muito boa praça e grande amigo de meus irmãos. Certamente seríamos muito bons amigos se eu morasse em Conchal.
Influenciamos e somos influenciados sem que saibamos como, quando e porquê. Mas certamente quase nunca saberemos quem influenciamos, porque nossas marcas ficam nas mentes das pessoas de uma maneira que jamais poderemos vislumbrar, a menos que elas nos digam que estamos lá, nas suas memórias e nos seus modos de vida.
Ousadia juvenil, espírito de uma época, contemporaneidade com o espírito do tempo, abertura de espírito, curiosidade à flor da pele, riscos calculados diante das ameaças, perigos e vícios da vida, poder sobre outros seres, poder e simbiose com outras espécies de seres, visual despojado, roupas avançadamente simples, e a Filosofia pela frente, um cosmo infinito a ser desvendado. Que mistérios estudaria Gera, nos infinitos livros de Filosofia das longínquas faculdades?
A imagem de um cidadão que em seu tempo foi e acho que ainda é tudo que se pode ser no seu meio. Essa foi a imagem do jovem Gera que se fixou em minha mente.
Desde então, Filosofia era para mim os mistérios de Gera, e Gera, a encarnação terrena desses mistérios filosóficos.
O Gera homem, de carne e ossos, passará. O Gera de cabelos longos, de pássaro no ombro e ideias incríveis na cabeça, jamais,
Nem em Conchal, nem em qualquer outro local do mundo ou além.
Nenhum comentário:
Postar um comentário