“Milhões anseiam pela imortalidade sem saber o que fazer da vida numa tarde chuvosa de domingo”
Susan Ertz
Mais uma vez: quem é Susan Ertz? Não sei. Simplesmente li a frase num velho exemplar de uma revista Seleções de Reader’s Digest. Mas a frase faz sentido.
Onde estou agora? Ou, qual meu referencial no espaço-tempo no momento em que escrevo esse texto para esse blog?
O tempo é sempre o tempo presente. Meu momento presente agora é uma madrugada relativamente fria de 29 de maio de 2004. Na medida que o presente desliza sobre o futuro e deixa o passado como rastro, esta data ficará cada vez mais antiga. Meus descendentes daqui a mil anos não serão sequer capazes de imaginar como tudo o que hoje é banal poderia ter existido e ocorrido. Mas existiu e ocorreu.
Melhor, existe agora enquanto escrevo e está ocorrendo em tempo real, enquanto digito cada letra desse texto. Sim, o tempo é mesmo relativo.
E o espaço? Onde me situo agora, neste momento? Qual meu referencial físico no espaço?
Estou sentado em uma confortável cadeira negra diante de meu micro, – um Pentium 266, uma coisa bastante ultrapassada para 2004, mas ainda muito eficiente e confiável – com um fone de ouvido, ouvindo um CD de Frank Zappa.
Uso uma camiseta velha verde escuro, bermuda preta, um relógio e um óculos na cara. Descrevendo as coisas assim, parece a descrição dos bens materiais deixados por Gandhi quando de sua morte, e que tanto admiraram o mundo pela sua frugalidade e desprendimento. Mas não é tão simples assim.
Estou no meu quarto-escritório, um cômodo de minha casa que uso para guardar meu computador e meus livros.
Minha casa fica em um bairro relativamente pobre de Goiânia. Um conjunto de casas conjugadas, novas, mas pequenas, em uma esquina resultante de duas ruas estreitas e feias, onde dezenas de crianças e adolescentes brincam a maior parte do dia. Uma quadra abaixo e um grupo de casas forma como que uma pequena favela junto ao Rio Meia Ponte, o rio principal que corta a cidade. Não é um bairro conhecido. Na verdade, ele é como um apêndice de bairros maiores e mais estruturados, mas como fica numa baixada junto a um rio, surgiu meio que marginalizado.
Moro na Vila Monticelli já a um ano e meio. Ela fica perto do Parque Agropecuário, o local onde ocorre anualmente a famosa feira agropecuária de Goiânia, um evento tido por muitos como o ponto alto do mundo agrícola do Estado de Goiás, e mesmo um dos maiores da Região Centro-Oeste e do Brasil. Mas, esquecida, logo perto do parque, fica a Vila Monticelli, onde diariamente vivo e me abrigo.
Tenho poucos amigos no atual estágio de minha vida. Pouquíssimos, a bem da verdade. Não mais que cinco. Talvez um ou dois. Nenhum deles é da Vila Monticelli. Na redondeza, conheço umas dez pessoas, incluindo o casal dono da pequena mercearia onde faço pequenas compras do dia. Creio que em termos comunitários, sou um ilustre desconhecido. Uma espécie de fantasma, visto por alguns com uma certa frequência, mas desconhecido como um fantasma. Estou conectado apenas fisicamente a essas pessoas, quer dizer, compartilhamos um mesmo bairro, mas é só. Minha vida gira em torno de outras esferas, que não a comunitária.
E onde está minha mente?
Meu corpo está sobre uma cadeira, num quarto cheio de livros, numa casa simples localizada numa esquina comum de um bairro negligenciado de uma grande cidade do Brasil, um país grande no lado oriental da América Latina, um continente, uma grande massa de terra firme na região Sul do planeta Terra, um planeta que, bem, daqui a mil anos espero que ainda saibam o que é e onde está situada a Terra.
Esta descrição resumida lembra um pouco a vida de certas pessoas que viveram num passado distante, cujas biografias nos relatam que levaram vidas ainda mais comuns do que a que achamos que costumamos levar nos nossos dias cotidianos. Muitos grandes homens do passado viveram vidas simples, sem luxo, sem amigos, sem fama e sem glória. Nenhum poder, e um reconhecimento que só veio a se consolidar por vezes séculos depois de terem morrido, e dos quais não puderam sequer cogitar, talvez mesmo nem desejar, quanto mais usufruir. A humanidade tem esse estranho comportamento: ela é relativamente cega para o presente, e de certa forma, aspira a um futuro grandioso, mas não sabe o que fazer, na verdade sequer sabem enxergar, seus grandes homens das suas chuvosas tardes dos domingos. Não sabemos o que o futuro nos revelará. Quais de nós hoje vivos serão lembrados daqui a cinco mil anos? E por quais motivos?
Não podemos saber de antemão, mas uma coisa parece certa: ninguém será lembrado por aquilo que não fez, ou que, podendo ou devendo ter feito, deixou de fazê-lo, não importando para os livros de História nenhum motivo, por mais convincente e persuasivo que seja. Seria bastante curioso lermos em algum livro de História o nome de algum personagem famoso que ficou famoso por, podendo ter sido um grande cientista e ter inventado a penicilina, não a inventou por não poder ter sido cientista, já que sua mãe morreu quando era ainda novo e teve que se adaptar à realidade de sua época sendo um humilde lavrador de terras, que morreu sem nada mais ter feito que lavrar terras. Mesmo Jesus, sendo um humilde carpinteiro, não entrou para história por ter sido um grande carpinteiro.
Quem sabe um dia possamos, de alguma forma engenhosa e inimaginável, resgatar as memórias das pessoas que já se foram e saber o que pensaram durante cada segundo de suas vidas. Neste caso, é possível que humildes desconhecidos que não entraram até então para os livros de História passem a entrar, em virtude daquilo que venhamos a saber sobre o que pensaram, mas esse conhecimento ainda está longe de ser possível.
Mas não significa que seja impossível.
Neste caso, seria bom que tomássemos mais cuidado com aquilo que pensamos. Ainda que não sejamos postos em pedestais e adorados no futuro longínquo, poderemos ser execrados como grandes vilões e perversos. Mas não estou falando sério sobre essa possibilidade. O universo talvez seja tal que jamais permita que isso venha ocorrer, para o bem e para o mal de nossos descendentes, e de nosso próprio nome. Para o bem ou mal de nosso próprio nome, porque é só isso que restará de nós, se é que um raio não apague nossas últimas informações de algum grande servidor de dados em algum órgão governamental de arquivos mortos. Então, morreremos pela terceira vez...
Minha mensagem do dia:
“Ninguém será lembrado por aquilo que não fez”
Rosenvaldo Simões de Souza
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