segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Colateral

Acabei de assistir Colateral, com Tom Cruise. Um filme que não tem nada de mais, a não ser violência sem sentido e tristeza. No entanto, há pelo menos uma passagem filosófica de alguma profundidade. A morte de pessoas próximas choca, e sentimo-nos péssimos diante de um cadáver. Essa semana que passou, tive pessoalmente a infelicidade de ver um cadáver embrulhado em um lençol numa rua no caminho entre minha casa e o meu serviço. Um senhor morreu de parada cardíaca por volta das nove da manhã, sufocado pelo calor de Goiânia, pela gordura no sangue, pela pressão sanguínea, pela idade, por um conjunto de fatores. Nada pôde ser feito e o corpo estava ali, na rua, quando passei para ir para o serviço. Isso não é comum. A morte não é agradável. Mas Vincent, o assassino interpretado por Tom Cruise, lembra ao chocado motorista de táxi que em Ruanda morreram milhares de pessoas em pouquíssimos dias, num massacre humano só superado em quantidade e rapidez pelos massacres de Hiroshima e Nagasaki, mas o taxista nada sentiu diante da catástrofe ruandense. Vincent ainda alega que somos nada diante de um cosmo sem sentido, e que matar ou morrer nada significa, num pessimismo digno de Schopenhauer.

Ao fim do filme, assistido depois do massacre de Beslan, fica a impressão de que vivemos uma época triste. Desde 11 de setembro, a exatos três anos, temos assistido a massacres constantes. New York, Washington, Pensilvânia, Madri, Beslan, Moscou, Bagdá, Falluja, Najaf, Stambul, Abu Grabi, Guantânamo, Tel Aviv, Gaza, só para citar os mais famosos. De fato, não precisamos sequer recorrer à nossa insignificância cósmica para minimizar a morte de um único ser humano. Basta tomá-la em comparação às barbáries que estamos quase que nos acostumando a ver todos os dias nos noticiários internacionais.

Vivemos uma nova cruzada? Talvez, mas de qualquer forma, estamos passando por momentos difíceis.

E o que dizer do Brasil? Não sei o que é pior: o terrorismo militante de fundo político e religioso e mesmo econômico, ou o terrorismo cultural que assola silenciosamente nosso país. Na verdade, esse tipo de terrorismo me deixa mais estarrecido e indignado que massacres de dezenas de civis inocentes. Não, não sou indiferente à morte de ninguém, mas sinto-me especialmente indignado com o massacre cultural a que somos submetidos, nós, brasileiros, pela mídia de nosso pobre país.

Senti que estamos num caminho perigoso no momento em que assisti por alguns segundos, por acaso, um programa de Gugu Liberato, num domingo, às sete da noite, no auge da audiência semanal, quando milhões de cidadãos de todas as camadas sociais estão grudados em frente à tv. Não é difícil para alguém que não vê os programas das televisões abertas e gratuitas perceber que o que a mídia faz, ou tenta fazer, com todos nós é muito mais cruel que aquilo que fazem grupos de terroristas suicidas nas lutas por suas causas, sejam elas quais forem. Quero crer que não seja o próprio Gugu quem esteja por trás de algo tão baixo, tão horripilante, como o programa que tem o trabalho de apresentar. A televisão brasileira presta um desserviço tal à nação que, de fato, não precisamos de inimigos: nossa mídia é nossa própria inimiga, mais poderosa que qualquer outra forma de ameaça, interna ou externa. Sutil, ela condena gerações de milhões de cidadãos à ignorância, à insignificância, à superficialidade, à banalidade em tal escala que não me espantaria em ver o Brasil passar por um processo de estupidificação de sua população tal que acabe por levar o país a um estado de barbárie pelo qual jamais passamos em toda a nossa história. Teremos, ou já somos, um país de estúpidos cuja escala de valores foi virada de cabeça para baixo por força de uma lavagem cerebral impetrada sutilmente pelos Gugus e Faustões, pelos Big Brothers e Casas de Artistas, pelas novelas das tardes e das noites, pelos grupos musicais semipornográficos, pela cultura da malícia e do duplo sentido, pela apologia da malandragem, da fila furada e do cheque sem fundo, pelo endeusamento dos Nelson Rodrigues e suas chanchadas baratas, enfim, por uma pseudocultura de um país que nunca produziu nada que tenha valor cultural atemporal e de caráter global reconhecido. Sim, temos cultura, mas não na qualidade e na quantidade suficiente para fazer de nossos cidadãos pessoas melhores. E se a televisão, como meio tecnológico de eficiência inquestionável, não pode contribuir, não devia nem por isso prejudicar. A elite que governa o Brasil e que dá as cartas na mídia provará do próprio veneno. O monstro que os Gugus e Faustões alimentam acabará por comer a todos da elite primeiro, e a si mesmo, depois, na sua ânsia por ignorância.

Mas a ignorância é apenas um efeito colateral na busca de um ponto a mais no Ibope.


Um comentário:

  1. [Marcelo]
    Cara, concordo com 99% da sua crítica. Só acredito que nossa televisão não seja tão ruim, embora devesse estar na UTI. Programas como o do Gugu, Faustão, Falando Francamente, etc etc etc são uns lixo(sic) mesmo. Mas até que tem programas bons... Jornal Nacional é um deles, você até pode falar que é marrom, mas conheço os Boner e não acredito (mas não coloco minha mão no fogo, que ele se venderia.... (pensei uns 3 minutos num outro programa bom de TV aberta e não achei). VEJA é outro lixo. Se pensarmos na quantidade de lixo que nos cerca, acho que piramos. Visite minha única mensagem no Blog - marcelodv.zip.net Um abraço.

    06/09/2004 11:44

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