terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Tudo está bem?

A quadragésima terceira pergunta da série que ando tratando ultimamente neste blog é uma pergunta simples, mas que, caso respondida adequadamente, pode elucidar muito a respeito da resistência que temos às mudanças que precisamos implementar em nossas vidas.

Na postagem anterior, questionei se não seria o caso de nós, seres humanos, agirmos melhor não nos preocupando com problemas triviais que atormentam nossas vidas. Não seria mais sensato vivermos sem preocupações desnecessárias?

A aversão que temos a enfrentar problemas nos leva a questionarmos a real necessidade de mudanças. No entanto, sabemos que vivemos vidas imperfeitas. Então, quando argumentamos que seria melhor deixar de lado as preocupações com problemas e nos concentrarmos mais em nossas fontes de alegria e prazer, surge esta nova pergunta, a quadragésima terceira, que reproduzo agora:

"Tudo está bem?"

A pergunta é simples. E cobro como resposta uma posição igualmente simples: sim, tudo está bem, ou não, não está tudo bem.

Uma pessoa pode dizer honestamente que está tudo bem com sua própria vida, e somos forçados a admitir que não temos como saber se isto é verdade ou não. Comparamos o aspecto exterior da vida de uma pessoa e chegamos à conclusão de que ela poderia ser mais rica, mais saudável, mais sociável, ou o que quer que seja, mas não temos razão alguma para dizer que interiormente, sob o ponto de vista psicológico, esta pessoa não está realmente satisfeita com a vida que leva. Podemos achar que ela não é suficientemente rica, mas ela própria pode achar-se feliz com sua situação financeira. Quem detém o poder de julgar de maneira mais sensata a situação de uma pessoa: ela mesma ou qualquer outra?

Há uma questão filosófica profunda envolvida nesta pergunta. A questão relaciona-se com a liberdade humana. Quão livre uma pessoa é para definir que rumo quer dar para sua vida? Que direito tem uma pessoa de dizer a outra o que esta última deve ou não fazer? Que direito tenho de dizer em um livro de autoajuda que você pode até estar se sentindo feliz com sua vida, mas que na verdade esta sua felicidade é ilusória, e que precisa seguir meus conselhos para ser realmente feliz como eu acredito que deva viver?

Temos a liberdade de fechar livros de autoajuda, dizendo que eles são desnecessários na medida em que consideramo-nos sensatos o suficiente para sabermos por nós mesmos aquilo que é o melhor para nossas vidas, deixando de lado a opinião de quem quer que seja, sob a argumentação de que nos conhecemos melhor do que qualquer pessoa no mundo, e portanto, estamos em melhor condição de saber o que queremos ou não para nossas vidas. E um autor pode dar a opinião que quiser sob determinado problema ou situação de vida, mas sabemos que quem detém a palavra final é quem lê, e se o leitor entender que o problema que o autor aponta não é um problema real para o próprio leitor, então o autor estará falando em vão.

A percepção íntima que temos a respeito de nossos problemas, no entanto, é limitada por uma série de fatores. Podemos de fato nos sentir satisfeitos com nosso estado de coisas, mas não vivemos isolados no mundo. Somos seres sociais. Estamos em permanente contato com outros seres humanos e temos um incrível poder de nos comunicar, trocar experiências e fazer comparações entre nós e nossos semelhantes.

Sempre que interagimos com outras pessoas, nas nossas conversas surgem comparações do tipo tal que desigualdades são percebidas entre aqueles que interagem, e essas desigualdades são estudadas, entendidas, e experiências de vida são compartilhadas. Imagine que isso vem ocorrendo desde que o ser humano habita a Terra, desde milhares de anos. Imagine dois homens primitivos se encontrando, trocando informações, se comparando. Caso um ande de sandálias rústicas tecidas com fibras de algum arbusto, e outro ande descalço, é natural que aquele que anda de sandálias irá notar que seria bom para seu companheiro que este passasse a não só andar de sandálias também, mas ainda o ensinaria a trançá-las, a escolher os arbustos adequados, a preparar a fibra, e assim por diante. O homem descalço pode ter passado a vida sem ter percebido seus pés nus como um problema até este encontro, mas depois disto, uma nova possibilidade se lhe apresentará. Dando margem à dúvida, poderá andar ainda algum tempo com os pés nus, mas no momento em que sofrer um ferimento que ele reconhecer que poderia ter sido evitado se estivesse de sandálias, então verá que sandálias não são uma questão de mero gosto, ou experiência cultural, ou um capricho de pessoas exóticas, mas são de fato ferramentas de utilidade comprovada, meios de proteção que lhe darão mais segurança, mais conforto, mais poder de locomoção, e que, embora possa causar algum desconforto no uso e dar algum trabalho na confecção em geral, são artefatos que valem a pena usar, e então passará a usá-las, ainda que eventualmente.

O mundo moderno não é muito diferente deste mundo primitivo. Evidentemente, nossos problemas básicos de sobrevivência física estão quase todos resolvidos. Aprendemos a usar calçados ainda quando bebês. Mas nossos problemas não se resumem aos aspectos físicos da sobrevivência. Temos infinitas necessidades. Não podemos satisfazer todas, mas podemos satisfazer as necessidades mais críticas. Na verdade, as necessidades, por serem muitas, são um complexo que é difícil de ser entendido. Não sabemos como uma necessidade relaciona-se com outra, qual gera qual, ou se há algumas delas ocultas de nossa compreensão. Muito provavelmente temos uma quantidade enorme de necessidades que desconhecemos. 

Ora, se desconhecemos um problema, como podemos resolvê-lo? 

Mas, observe: eu falava de necessidades, e agora falo de problemas. Necessidades são o mesmo que problemas?

Uma necessidade pode ser entendida como uma carência de algo. Se nos falta algo, isto é um problema? Como podemos ter carência de algo que sequer sabemos que existe? Parece uma situação absurda, mas não é. Uma pessoa pode morrer sem saber a causa, mas a causa pode ser socialmente conhecida. Por exemplo, uma pessoa pode desenvolver problemas físicos por falta de consumo de sal, e achar que esses problemas físicos não são um problema de fato, mas mero acaso, uma fatalidade da vida, um capricho do destino. Não podemos forçá-lo a aceitar o problema como um problema, mas podemos facilmente resolver o problema, caso ele concorde em tentar. Basta de ele passe a consumir sal.

Então, necessidades existem, a despeito de sabermos, ou aceitarmos, ou termos consciência delas. E necessidades são consideradas problemas por uma sociedade, ainda que indivíduos possam não ver as coisas desta maneira.

Pessoas podem viver com suas necessidades e problemas sem dar-lhes solução ou combate.

Elas podem viver como se tudo estivesse bem. Elas podem discordar da sociedade como um todo, e considerar suas mazelas um estado normal, aceitável, feliz até.

Temos o direito de questioná-los?

A resposta a esta questão é que problemas são dinâmicos.

Uma pessoa pode achar que o vício do cigarro, por exemplo, não é um problema. Pode sentir prazer no fumo e rejeitar qualquer tentativa de convencimento quanto a parar de fumar. Temos o direito de recriminá-lo pela sua teimosia? Ele não estará correto em seu julgamento baseado em seu estado interno de espírito?

Não. ele está errado, porque embora ele não julgue o ato de fumar um problema, a sociedade julga que seja. E não é apenas uma questão de gosto pessoal, onde uma maioria impõe seus gostos sobre uma minoria. A questão é que o problema que o fumante julga ser somente seu não o é de fato. Fumantes adoecem. Uma pessoa doente precisa de cuidados. Doenças são problemas sociais, e não apenas daquele que está doente. Somos seres sociais solidários, embora possamos dar mostras horríveis de egoismo em diversas situações. Mas em geral, não deixamos as pessoas adoecerem e morrerem sem que seja dado nenhum tipo de ajuda. Mesmo o doente que foi levado à doença por um vício com o qual se ateve por decisão própria, contrariando todas as recomendações de cuidado, ainda assim receberá a ajuda que precisar, e os fumantes só morrem porque não somos capazes de curá-los. Daí que a liberdade do fumante é uma liberdade que atende seus próprios interesses de prazer, mas pune a sociedade que dá asas a esta mesma liberdade. E daí que fumar é vício, e não hábito, porque não consideramos livres as pessoas que trazem prejuízos à sociedade onde vivem e da qual dependem em busca de mero prazer físico momentâneo. Entendemos, benevolentemente, que não é uma questão de vontade, mas de escravidão a um vício, e passamos a ver o viciado como digno de pena, porque, afinal, depois do prazer, ele é quem mais sofrerá as consequências de suas decisões desastrosas.

Assim, necessidades e problemas sociais, ainda que não vistos assim por indivíduos, representam um custo para todos, e não é uma questão de gosto ou liberdade, mas de racionalidade. Se pagamos caro pelas ações de indivíduos que não têm consciência de que seus atos são prejudiciais, temos o direito de fazer esta pessoa consciente de que sua atitude representa um problema para o grupo, ainda que não represente um problema para ela mesma.

Nossa liberdade de permanecer em uma vida que julgamos sem problemas termina no momento em que passamos a prejudicar outras pessoas. Qualquer pessoa que se sinta prejudicada em decorrência de nosso comportamento pode e deve cobrar de nós uma adequação. Nossa liberdade de viver conforme bem entendermos é uma liberdade relativa. Um comodismo egoísta não deveria ser tolerado se levasse alguém mais que o próprio indivíduo acomodado a sofrer as consequências ou prejuízos desse comodismo.

Daí que os pais tem o direito de ter filhos, mas o dever de cuidar bem deles. Daí que as pessoas podem comprar carros velozes, mas precisam respeitar regras de trânsito e daí que uma criança pode gostar de andar descalça, mas precisa andar de calçados, porque pés machucados precisam ser cuidados, e mesmo uma criança precisa entender que não pode dar trabalho aos adultos simplesmente porque é caprichosa e deseja fazer as coisas da maneira que bem entende.

Tudo está bem?

Talvez esteja bem sob meu ponto de vista íntimo, mas está bem sob o ponto de vista social? Estou, com meu comodismo preguiçoso, prejudicando alguém que não tem culpa nenhuma pela minha preguiça? 

Talvez mudar não seja uma questão de gosto, mas de necessidade. Talvez seja mesmo uma questão social. Quem sabe seja mesmo uma questão de Estado e de política.

Mas, dando um passo além, suponhamos que não, não estamos prejudicando ninguém com nosso comodismo. Por que não deixar as coisas como estão? Por que mudar um estado de coisas tão confortável? Afinal, não sabemos o resultado de uma possível mudança. Podemos criar problemas em uma situação que não precisa ser mudada. Por que correr o risco?

Se o comodismo pode ser justificado sob este ponto de vista, quer dizer, se não há uma motivação social para a mudança, um indivíduo sensato deveria saber que o mundo é dinâmico, a vida muda com o decorrer do tempo, e não há garantias de que tudo continuará como está no futuro.

Então, estamos já na área de abrangência da próxima pergunta. Nesta nova área, saímos do campo social e entramos no da previdência, da sensatez e da prevenção.

É o que veremos no próximo post.

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