segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Uma chance para a preguiça

Minha pergunta de número 42 da série que ando discutindo ultimamente neste blog é uma pergunta rebelde.

Tenho feito muitas perguntas que procuram entender o mundo da motivação humana, o uso de livros de autoajuda e a dificuldade que temos em mudar um estado de coisas.

Tendo falado da importância da disciplina, busquei na minha última postagem usar recursos argumentativos no intuito de convencer uma possível resistência à mudança. Eu disse que pessoas costumam ser resistentes a mudanças de uma forma negativa, enfatizando problemas, em vez de oportunidades.

Mas, dando um passo além em defesa da indisciplina e contra a rigidez de métodos que podem fazer da vida uma existência sistemática e árida, fiz esta 42ª pergunta, a qual reproduzo aqui e agora:

"Por que não usar nosso tempo livre para fazer apenas o que estamos a fim de fazer pura e simplesmente?"

Esta é a pergunta honesta do preguiçoso que mora em mim, sem firulas ou subterfúgios. Quer dizer: por que tenho de ser disciplinado, ter planos e perder tempo dando atenção aos livros de autoajuda? Afinal, a esmagadora maioria das pessoas vive muito bem sem eles. Por que complicar minha vida se posso viver tranquilamente sem as obrigações que eles me impõem?

Afinal, quem teve a ideia de inventar livros de autoajuda? Quem disse que queremos conselhos de gente que sequer conhecemos? A vida já não tem problemas o suficiente para nos tomar quase o tempo todo? Por que se dar ao trabalho de ler um livro somente para procurar mais problemas dos quais sequer temos noção de que possam existir em nossas vidas?

O mundo tem dessas coisas. Em uma época como a que vivemos, complexa, cheia de gente e desafiadora em termos econômicos, não faltam problemas. Mas não é só isso. Há ainda uma indústria de geração de problemas. Há ramos de atividades cujo esforço se concentra em criar problemas, fazer as pessoas terem a percepção de que possuem o problema, de que o problema é delas também, e depois, vender soluções.

Quase todo o sistema econômico mundial reflete essa lógica. Por exemplo: por que usar um coador de pano encardido e velho se posso comprar uma cafeteira elétrica com filtro de polímeros por um preço módico? Compramos a cafeteira porque somos convencidos de que o coador velho de pano é um problema. Esperar a água do café ferver é um problema. Lavar o coador é um problema. E a cafeteira é a solução.

Este singelo exemplo ilustra bem a mecânica do sistema industrial de substituição de utensílios para casa, mas o raciocínio é o mesmo para quase todo o capitalismo. Livros de autoajuda são parte da indústria do aconselhamento. Eles competem com médicos, psicólogos, religiosos, escolas, universidades, professores, jornais e políticos. Eles, como um conjunto, vendem soluções para problemas que são conhecidos, mas podem vender problemas novos, que sequer suspeitamos que existem.

Por exemplo: se você acha que não ganha bem, alguém vem e escreve um livro que ensina você a ter sua independência financeira. Se você acha que ganha bem, vem alguém e lhe diz que sua satisfação é ilusória, por uma série de razões que você desconhece, mas que é obrigado a aceitar como convincentes, e por fim, sua alegria se esvai e você se vê correndo atrás de mais dinheiro, artificialmente insatisfeito em decorrência de uma simples leitura de um livro. Claro, não há garantia alguma de que terá sua felicidade de volta.

Então, como somos seres humanos, e seres vivos, que vivemos de consumir energia difícil de ser conseguida, temos a tendência ao acomodamento, à preguiça, ao sossego, à aceitação do estado das coisas. Aceitamos a maioria dos problemas, porque dá muito trabalho resolvê-los. Problemas são consumidores vorazes de energia de todo tipo. Uma simples lâmpada queimada é um transtorno. Toda a burocracia do mundo é odiada, porque dá trabalho sem nenhum ganho evidente para quem tem de lidar com ela. E problemas psicológicos, sejam eles reais ou artificiais, costumam ficar em um segundo plano, afastados da vista, da consciência, porque temos mais o que fazer do que preocupar-se com nossas pequenas falhas, nossos traumas, nossas fraquezas profissionais que são pedras no nosso caminho rumo ao nosso primeiro milhão. Não sabemos se estamos sorrindo o suficiente, se estamos respirando fundo o suficiente, se estamos comendo fibras o suficiente, mas não importa. São todos pequenos problemas que não podemos atacar com a energia necessária para vencê-los, liquidá-los definitivamente. São como moscas nos rodeando em uma tarde quente no campo. São parte da paisagem, parte da vida, e fazemos bem em ignorá-los em vez de perdermos nossa serenidade atacando-os.

Então, se é verdade o que digo acima, por que não usar meu tempo livre para fazer apenas o que estou interessado em fazer e nada mais? Por que autoajuda? Por que um esforço de melhoria deliberado, mas trabalhoso e cansativo? Não é verdade que milhões de pessoas vivem relativamente bem sem este tipo de preocupação?

A questão merece uma resposta sensata.

O que tenho a dizer como resposta é que nossa mente possui um mecanismo tal que podemos tentar, mas não seremos bem sucedidos no processo de enganar a nós mesmos. A coisa é interessante, e em um futuro qualquer, falarei mais sobre este mecanismo. O que interessa mesmo, agora, é que podemos fingir que não sabemos nada sobre um determinado fato, mas se sabemos dele realmente, este fingimento não funciona para nós mesmos. Funciona para os outros, quer dizer, uma pessoa que não sabe se sabemos ou não determinado fato pode ser enganada e achar que não sabemos, mas nós sabemos que sabemos.

Ora, se eu leio um livro, e tomo conhecimento de seu conteúdo, não posso mais fingir que não sei sobre aquilo que li. Posso, sim, não fazer nada a respeito, e esperar e torcer que o tempo vá apagando aquele conhecimento de minha memória, até que eu não me recorde mais dos detalhes, e tenha apenas uma vaga ideia daquilo que li, de forma que esta miragem de saber, este borrão de conhecimento não valha mais nada do ponto de vista prático.

O fenômeno do esquecimento é real. Tente, caso não seja um matemático, lembrar-se das regras para se fazer um cálculo qualquer levemente complicado sobre, digamos, geometria. Lembra-se de alguma fórmula específica que sirva para alguma coisa? Provavelmente não. Sabemos que há uma fórmula que ajuda a achar o volume de uma esfera, dadas certas medidas desta esfera, mas como organizamos estas medidas em uma fórmula é algo que não nos recordamos mesmo com muito esforço mental. E o mesmo se dá com o conhecimento dos livros de autoajuda. Um autor lhe recomendará que faça algo, tal como iniciar um diário para ir anotando o desenrolar de um processo onde você tenha que ir reduzindo um certo comportamento até ele desaparecer, e você ter os benefícios que espera ter deste novo modo de vida sem aquele comportamento. Se você não iniciar o diário, não anotar os fatos, deixar para uma semana depois, um mês depois, esqueça: não fará mais, nem se lembrará mais de que deve iniciar um diário, e terá uma vaga lembrança de que tem um comportamento que deseja eliminar, e que tem o método sugerido pelo livro. Se o tempo passar ainda mais, você se esquecerá que leu o livro. Se por acaso lembrar, será uma vaga lembrança, igual aquela que temos de um filme qualquer que assistimos apenas uma vez a dez anos atrás. Se não for um livro ou um filme muito famoso e impactante, saberemos, quando muito, o nome de um ou dois atores e histórias, e os detalhes se perderão para sempre.

O esquecimento é uma forma de autoengano.

Mas, o problema não desaparece, exceto se tivermos muita sorte. Esquecemos a solução, mas não o problema. Deixamos de enfrentar o problema, nos poupamos de um esforço continuado na luta para resolvê-lo, mas ao assim fazer, o problema consolida-se. Ele fica mais forte, mais antigo, mais arraigado. Você perdeu o primeiro round, porque sequer se deu à coragem de tentar eliminá-lo. E ele, mais cedo ou mais tarde, lhe incomodará como uma ferida aberta.

A resposta que dou à pergunta é que usar nosso tempo para fazermos apenas aquilo que gostamos não representa um mau em si, mas nossos problemas permanecerão tais como estavam. Alguns evoluirão para problemas maiores, mais nocivos, mais crônicos. Teremos prejuízos cada vez maiores com eles. O tempo perdido ignorando-os fará com que o tempo de vida que nos resta seja totalmente insuficiente para eliminá-los, de forma que perdemos a esperança de vivermos livres deles. Veja, por exemplo, o caso do fumante. Fumar é um vício terrível, e os fumantes adiam a luta até o momento em que já é quase tarde demais. Os danos do vício não combatido fazem todo o tempo aproveitado em não combatê-lo se esvair em nada. Você deixa, por exemplo, de gastar dois minutos por dia com a coleta de folhas sujas em seu jardim. Depois de um mês, você não gastará o mesmo que uma hora (que são dois minutos multiplicado por trinta dias) para resolver o problema. Você gastará mais. Muito mais. Tarefas rotineiras poupam esforços. Tarefas acumuladas inflam-se como fermento e tomam mais tempo e recursos que a simples soma das tarefas rotineiras e diárias que poderiam tê-las evitado. Resolver pequenos problemas diários é mais simples que resolver mensalmente um grande problema fruto do descaso em resolver pequenos problemas diários. Você pode remover uma montanha de pedra retirando uma pedrinha todos os dias, mas não pode remover a montanha toda num único dia, poupando o trabalho rotineiro diário. Esta percepção acerca do agravamento de problemas e de que problemas grandes são maiores que a soma de pequenos problemas é uma das razões que me levam a responder a pergunta principal deste texto com a afirmação de que nós podemos gastar nosso tempo fazendo somente o que gostamos, mas depois teremos de pagar o preço de nosso desleixo para com nossos problemas, porque eles crescerão ao longo do tempo, tal como fungos, até que se tornem não administráveis e seus danos insuportáveis.

Uma alegação cética do preguiçoso crônico que há em mim resmungou algo que merece uma resposta. O resmungo foi de que, afinal de contas, a vida não está assim tão ruim, e que essas pequenas moscas que nos rodeiam no campo não merecem muita atenção de nossa parte, porque são quase inofensivas, e no mais, tudo vai bem em nossa caminhada.

A resposta a esse retrucar preguiçoso é uma outra pergunta: estamos mesmo sem problemas graves? Essas moscas são mesmo inofensivas? Elas serão sempre pequenas moscas que se contentarão em nos rodear inofensivamente? E, afinal, estamos mesmo em um prado verde em um belo entardecer, na mornidão de sol que se põe, vislumbrando ao longe as cordilheiras, e mais além o oceano azul que se estende, infinito?

Esta é uma pergunta que o preguiçoso precisa responder sinceramente, mas não agora, porque ai já estaríamos adentrando na área de discussão que pertence à quadragésima terceira pergunta.

Tratemos, pois de expressá-la, no próximo post, para que o preguiçoso possa ter o trabalho de respondê-la.

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