Este post trata da quadragésima sétima e última questão da série que venho discutindo neste blog.
Nós, seres humanos modernos, somos animais inquietos. Passamos nossa vida imersos em um processo de satisfação de necessidades e desejos, tal como todos os animais, mas nós somos culturalmente condicionados a desejar coisas das quais realmente não necessitamos.
A necessidade, real ou artificial, quando não atendida torna-se um foco de insatisfação que faz com que nos sintamos não muito bem. Essa sensação de desejo não realizado é incômoda, e costumamos nos comparar com outras pessoas para medir se estamos vivendo bem ou não. Quando temos a percepção real ou psicológica de que não estamos tão bem quanto nossos semelhantes aos quais temos contato, sentimos que vivemos uma vida aquém da que poderíamos viver. Por vezes, essa sensação de frustração e fracasso pode levar a uma série de ações em busca de satisfazer essas necessidades ou desejos. Por vezes, vivemos em uma tal rotina e entendemos que o esforço que teremos que fazer para vivermos em condição de igualdade com aqueles que julgamos estar vivendo melhor que nós é tão grande que preferimos permanecer na situação na qual nos encontramos. Em caso de optarmos pelo conformismo, a insatisfação permanece, porque a necessidade permanece, porque, afinal, a diferença que percebemos entre nós e nossos semelhantes permanece, já que não fizemos nada para fazer desaparecer essa desigualdade.
Ora, em dado momento eu questionei o que seria este estado no qual não perceberíamos estar em uma situação na qual sentiríamos desejos incômodos e frustrantes. Percebi que não há uma escala objetiva para tomarmos mão dela e fazermos comparações sensatas. Sem uma escala fora de nossas mentes, podemos estar sob a influência de desejos que na verdade são caprichos mesquinhos e egoístas, socialmente absurdos e perniciosos. Tudo vai depender do quão sujeitos estamos a ser influenciados por fatores externos a nós mesmos. Um ser humano normal não sente, fisiológica e psicologicamente falando, desejo natural de correr por estradas sinuosas pilotando uma Ferrari a 200 km/h tentando ultrapassar uma loira em uma Mercedes, como num filme de James Bond. Se alguém deseja realizar essa fantasia, é porque de alguma forma se deixou sujeitar às influências da ação do marketing moderno. Pilotar Ferraris em estradas da Riviera é uma extravagância que não faz sentido, mas curiosamente, milhões de pessoas anseiam por realizá-la. Ora, não podemos, todos, dirigir Ferraris pela vida afora. Este é um desejo bobo e infantil. Uma pessoa sensata não deveria sequer cogitar em um dia realizá-la. Logo, deveria dispor de meios para filtrar, dentre os milhares de apelos aos quais está sujeita durante sua vida, qual deles é realmente um apelo sensato e que deve tentar atender, e qual é um falso apelo, qual não passa de uma mera tentativa de manipulação visando fazê-lo dispender dinheiro ao consumir algo de que realmente não precisa, condicionado pelo apelo de marketing implacável ao qual está sujeito.
Que filtro é este? Que critério usar para separar necessidades, desejos e objetivos de vida legítimos, da mera fantasia de consumo implantada pelo marketing?
Como temos infinitas necessidades, parte delas relaciona-se com fatos físicos reais, que podemos medir, e parte delas se relaciona com fatos mentais, percepções e desejos íntimos, psicológicos, os quais não podemos medir nem sondar, exceto em nós mesmos, e ainda assim, muito tenuemente.
Daí que fiz a seguinte pergunta, em 2001, em minha busca por uma compreensão maior do fenômeno do autoaperfeiçoamento e da busca por mudanças positivas de vida:
"Como medir o bem estar matematicamente?"
A pergunta foi e é para mim de tal importância, que eu poderia ter feito mais uma centena de perguntas depois dela, mas não o fiz exatamente porque ela é tão fundamental que não faz sentido ir além, sem antes respondê-la.
Eu disse já que medir o bem estar pode ser uma tarefa realizável se nos limitarmos a fazer comparações e medições objetivas entre indivíduos e entre sociedades comparando e medindo aquilo que pode ser comparado e medido, ou seja, fatores fisicamente contáveis, mensuráveis, e não sensações íntimas vagamente discerníveis ou vontades passageiras e extravagantes. Não se fala em medir fantasias, mas necessidades e satisfação de necessidades reais. Se temos infinitas necessidades, elas não precisam, nem podem, nem devem ser satisfeitas ao mesmo tempo. Não se pode, nem se deve, deixar de se alimentar para juntar dinheiro para se ter uma tiara de diamantes, ou uma Ferrari. Logo, alimentar-se deve, socialmente, coletivamente falando, preceder a busca de uma Ferrari quando tratamos as duas ações como necessidades a serem atendidas. Assim, espera-se que se uma sociedade é composta de pessoas razoavelmente racionais, veremos nela pessoas empenhadas mais em matar a fome do que pessoas empenhadas em dirigir Ferraris mesmo à custa de se passar fome. Ferraris são antes desejos que necessidades, e esta mesma sociedade deve ter a nítida percepção de que qualquer de seus membros que tente antes ter a Ferrari mesmo que tenha de passar fome não representa um membro típico desta mesma sociedade, mas uma pessoa psicologicamente perturbada, desequilibrada e irracional. Daí que nesta sociedade, podemos medir objetivamente quantos de seus membros estão sendo satisfeitos em suas necessidades de alimentação, e dependendo do resultado que obtivermos, podemos dizer que o indivíduo A não está dentro da média desta sociedade neste quesito, o da alimentação, porque podemos saber que este indivíduo está se alimentando menos do que a média, seja porque ele nos informe, seja porque saibamos que ele não dispõe de renda para tal, seja porque não o vemos comprando alimentos ou se alimentando, seja porque esteja magro, ou ainda porque juntamos todos esses indícios e formamos um quadro geral da situação do indivíduo que podemos dizer com razoável precisão se ele está se alimentando adequadamente ou não.
Mais uma vez, esta é uma tarefa não para a Psicologia, mas para a Sociologia, a Geografia, a Economia, a Medicina, dentre outras ciências.
Podemos dar uma resposta à minha pergunta dizendo que podemos medir o bem estar humano matematicamente usando das ferramentas teóricas e aplicadas das ciências que se preocupam com o bem estar humano em geral, e que se preocupam mais com a comparação entre indivíduos e grupos do que com a situação psicológica íntima de um único indivíduo, tal como faz a Psicologia ou a Psiquiatria, ou mesmo o Marketing.
Ora, eu iniciei minha série de perguntas partindo de uma questão, uma dúvida em torno da adequação ou não de se preocupar com autoajuda, uma espécie de ramo da Psicologia Aplicada, e terminei com uma dúvida sobre a aferição matemática do conceito de bem estar do ponto de vista das diversas ciências que se se ocupam do bem estar social humano. Foi uma longa curva de pensamentos, tenho que admitir.
Chegar à necessidade de recursos de ciências sociais para se justificar uma preocupação com necessidades psicológicas não deveria ser uma surpresa para muitos, mas para mim foi.
Disse que esta foi a última pergunta porque fiquei surpreso em descobrir que no final de uma cadeia de dúvidas e perguntas céticas, eu chegara a uma área que me era bastante familiar.
Um pouco de história pessoal sobre minha formação educacional é conveniente aqui, para elucidar alguns pontos de minha surpresa. Eu nunca estudara Psicologia em momento algum de minha formação escolar. Nem no segundo grau, nem na faculdade de Administração eu tive contato com qualquer coisa que fosse relacionada à Psicologia. Tenho que admitir que pensando nisto agora, eu perceba a ausência de aulas de Psicologia para alunos de Administração como uma falha pedagógica imperdoável. Daí que em minha curiosidade natural eu tenha me apegado a livros de autoajuda, porque, afinal, era um tipo de literatura mais próxima possível da Psicologia que até então eu tivera acesso, já que não estudara diretamente a Psicologia nos bancos escolares ao longo de tantos anos. Ora, não é porque não incluíram Psicologia na grade de matérias de meu curso de Administração que eu, como administrador, não precisasse de aprender Psicologia. Tanto precisava, e tanto não sabia verbalizar ou racionalizar essa necessidade que acabei tomando de mão aquilo que já dispunha, que tinha acesso mais facilmente, ou seja, os livros de autoajuda.
Ora, eu lera livros de autoajuda antes de entrar na faculdade. Logo, ainda que de maneira um tanto romanceada, eu tinha tido contato com rudimentos de Psicologia. Aquele tipo de aprendizado me parecia útil e valioso de ser aprendido. Mas eu, de alguma forma, não tivera a percepção de que era de livros de Psicologia que eu precisava, e que os livros de autoajuda supriam apenas parte de minhas necessidades, e satisfaziam apenas parte de minha curiosidade. Se eu tivesse tido aulas de Psicologia na faculdade de Administração, eu certamente teria uma noção mais clara de que satisfação e insatisfação pessoal, busca de autoaperfeiçoamento, motivação, eram coisas para serem tratadas pela Psicologia, e não necessariamente pela Economia ou Sociologia. Mas, como não tive acesso até então à Psicologia, eu recorri àquilo que já tivera acesso: a Maslow, que vi no curso de Administração, à Economia e suas tabelas tratando de dezenas, centenas de variáveis numéricas abordando os mais diversos assuntos sociais sobre os quais eu tinha enorme curiosidade, e que eu tivera contato antes e durante o curso de Administração, e mesmo a Geografia, também com seus gráficos e tabelas, que não estudei na faculdade, mas que estudei durante minha vida toda por pura paixão e curiosidade pessoal. Ora, eu recorri àquilo que conhecia.
Sociologia, Economia, Geografia, Estatística, Marketing, áreas que pouco contato têm com nossas mais profundas insatisfações pessoais. Seria verdade mesmo essa suposta distância entre assuntos aparentemente tão díspares? Eu comecei a suspeitar que não.
Além do mais, a chegada de uma percepção de que eu poderia tentar resolver problemas pessoais íntimos por meio do recurso às ciências me fez sentir que estava caminhando em terreno bem mais seguro do que imaginava antes, porque, vejamos, os livros de autoajuda nos vendiam soluções tidas como segredos de pessoas ilustres e bem sucedidas que nos eram passados mais como fruto da enorme benevolência de gente desprendida e caridosa, do que como ensinamentos destilados de estudos e pesquisas metódicas. Ora, eu tinha em mãos mais um livro de mágicas e segredos dominados por alguns raros iluminados do que um conjunto sistematizado de conhecimentos aplicável com segurança por quem quer que se dispusesse a aplicá-los metodicamente. No momento em que eu desci do voo errante dos livros de autoajuda e toquei no solo firme da Ciência, ainda que tenha pousado no campo errado, ou não tenha pousado no campo mais adequado, eu ainda assim senti que agora eu dispunha de alguma racionalidade à qual me fiar.
A ciência!
Eu estava ligando meu futuro pessoal ao método científico! Eu estava fazendo sonhos se apoiarem em rocha!
Mas não foi só esta a grande realização que se originou de minhas dezenas de perguntas céticas e incrédulas. Eu, em momento posterior, refinei minhas perguntas. Trataremos disso mais adiante, em uma série de novas postagens. Quero deixar claro que ter chegado a esta pergunta final significou um reconhecimento de uma série de fragilidades em minha formação profissional, assunto que devo também tratar com bastante cuidado em postagens posteriores. E, além do mais, o toque errático do voo errante no solo da Ciência fez-me reconhecer um lapso, um hiato de sonhos e paixões juvenis interrompidos que me deixou dolorosamente consciente de que a vida é dura, tão dura, que é capaz de matar os mais belos sonhos, se não tomarmos o cuidado de protegê-los e acalentá-los, ainda que por longo tempo, e sob as mais adversas condições. Admiti, com esta pergunta, que eu abrira mão de um modo de vida profundo e verdadeiro em troca de um modo de vida mundano e rasteiro, arrastado por um lamaçal de problemas diários e fracassos, frustrações e desencontros que soterrou esse modo de vida profundo e verdadeiro por longo anos sob uma camada de rancor, ódio e mesquinhez tal que eu sequer tinha noção de que um dia eu tivesse sido um menino sonhador e apaixonado pelo saber. Ao desesperadamente questionar fórmulas mágicas de autoajuda, forcei-me a cavar fundo em mim mesmo, e ao chegar na pergunta acima, eu sabia que tinha chegado também ao pequeno menino estudioso que estava soterrado sob escombros de quase vinte anos de sofrimento e descuido para comigo mesmo.
Eu, ao fazer a pergunta acima, ressuscitei o menino-gênio que dormia em mim, e voltei à vida.
Lentamente, é verdade, mas voltei.
Minha agenda registrou esse lento despertar.
Eu compartilho esses pensamentos porque acho que são dignos de serem compartilhados. Sou aquele menino que não se deixou morrer soterrado pela rudeza da vida de adulto. Eu, como um homem que se afoga, dei um salto rumo ao ar e respirei fundo, dando tempo e força para uma nova etapa de esforços rumo ao solo firme, e acho este processo digno de ser registrado para mim mesmo e para quem mais queira conhecer. Não tenho porque esconder ou temer revelar algo que me enche de orgulho. Eu tenho, sim, orgulho de minhas quarenta e sete peguntas sobre autoajuda.
Dito isso, relembro que continuei usando minha agenda para registrar meus pensamentos, dúvidas e raciocínios ao longo dos anos, e que tornarei a usar este blog para registrar esses escritos e aprofundá-los quando julgar adequado.
Nas postagens seguintes, tratarei de minhas anotações seguintes às perguntas agora respondidas. Só gostaria de lembrar que nem todos os eventos importantes dignos de nota foram de fato anotados na agenda. Alguns eventos cruciais em meu processo de raciocínio e estudos não foram registrados em papel. Assim, terei algumas histórias extras para contar, para que possamos entender como as coisas se encaixam, se encadeiam, retrocedem e se completam.
Tendo dito isso, lembro que já estamos em 2014. Que seja um excelente ano para todos!
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