quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O que é estar bem?

A quadragésima sexta questão da série que venho discutindo neste blog é uma pergunta que segue a linha da questão anterior, a qual tratei no último post.

Sempre que falamos em mudanças de vida, algo em nós reclama e questiona se realmente precisamos mudar, se não é melhor deixar as coisas como estão, deixar os problemas resolverem-se por eles mesmos ao longo do tempo, e ainda vamos além, dizendo que na verdade não precisamos mudar porque tudo está bem, e os problemas que nos incomodam não são realmente problemas importantes, e que estamos satisfeitos com a vida que estamos levando, porque, apesar dos pesares, todo mundo tem problemas, e então, se é assim, podemos ir levando a vida com os problemas que já conhecemos, e com os quais já estamos acostumados, e que sabemos como administrar.

Então, se por um lado dizemos que estamos bem, e por outro, o mundo vive a nos apontar defeitos os quais precisamos tratar de maneira adequada ou mesmo definitiva, fica-se com a dúvida, que expressei da seguinte forma:

"O que é estar bem?"

Estar bem. Estar OK. Estar com a vida em boas condições. O que é estar bem? Quem define os critérios por meio dos quais avaliamos a adequação ou não de uma vida? Quais critérios são estes? Qual o limiar a partir do qual estamos vivendo bem ou mal? O que significa exatamente este conceito de "bem"?

A pergunta, como podemos perceber, esconde dificuldades em ser respondida de maneira direta e simples. Por isto, vamos tentar respondê-la por partes.

Partamos do princípio de que todo indivíduo possui uma percepção de como seja a sua vida. E depois, supondo que se viva em sociedade, todo indivíduo é capaz de fazer comparações entre as vidas de diferentes pessoas. Eu vivo bem. Mas a pessoa A vive melhor que eu, a pessoa B, vive pior que eu e a pessoa C vive um pouco melhor que B, mas não tão bem quanto D, e assim por diante. Não somos obrigados a avaliar a vida de ninguém, mas em geral, fazemos comparações como a que ilustrei acima. Pessoas em sociedade comparam suas situações com a de seus convizinhos, o que podemos considerar um comportamento perfeitamente normal.

Não há escalas objetivas de comparação. Uma pessoa pode achar que vive mal, enquanto que outras podem achar que esta mesma pessoa vive bem, ou muitíssimo mal. De modo geral, há uma média de qualidade de vida em uma dada sociedade, e o conceito de boa ou má qualidade de vida gira em torno desta média. Hoje, com os meios de comunicação globais de que dispomos, as comparações vão além da localidade física em que vivemos, e nos comparamos ao resto do mundo. Vivemos pior que, digamos, os noruegueses, mas vivemos melhor que os etíopes. Essas comparações são comuns e não há nada de excepcional em reconhecê-las. No entanto, na medida em que se compara uma dada coletividade com outra ou se compara indivíduos dentro de uma mesma coletividade usando-se de medições sistematizadas, passamos da mera opinião pessoal a respeito do que achamos de nossa vida e da dos nossos vizinhos e passamos ao ramo da Sociologia, Geografia, Economia e Estatística, quer dizer, passamos para o ramo da análise científica da situação social desta dada coletividade, ou coletividades.

Quando pergunto o que é estar bem, o faço pensando na percepção individual, psicológica do termo, e não na sua avaliação científica.

Psicologicamente falando, pessoas podem ter percepções variadas com relação à qualidade das vidas que levam.

Há diversos fatores que podem influir nesta percepção, tal como origem social, experiência de vida, religião, opinião política, profissão, sexo, idade, país de origem, cultura, acesso a comunicação e informação, grau de instrução, dentre outros. Não é simples nem fácil estabelecer relações entre esses diferentes fatores. Não o faremos, ao menos por agora, nesta postagem. Veremos mais sobre esse assunto ao longo do tempo, em postagens futuras neste blog.

Por hora, no entanto, é preciso deixar claro que, qualquer que seja a opinião psicológica que uma pessoa tenha a respeito de sua qualidade de vida, há certos parâmetros mínimos que podem ser usados como medidores objetivos para se avaliar socialmente se uma vida está sendo adequadamente vivida ou não.

Ninguém, por exemplo, pode negar que alguém que sofra por falta de alimentos, seja por pobreza, seja por opção de não se alimentar adequadamente, leva uma vida menos rica do que alguém que não padeça da falta de alimentos. Neste caso, aquele que sofre a falta de alimentos pode alegar que vive assim por opção, e que intimamente é muito feliz assim, mas tomaremos esta opinião como não digna de reconhecimento, porque sabemos que esta situação não é a típica dos seres humanos normais. Não consideramos normais as pessoas anorexas, por mais que elas se empenhem em dizer que são felizes. Esta percepção social se dá porque há entre nós, humanos, aquilo que podemos chamar de reconhecimento de que nós temos necessidades básicas que precisam de um mínimo de atendimento.

A qualidade de vida então, a despeito de diferentes percepções psicológicas dos indivíduos, tem parâmetros lastreados em um conjunto de necessidades.

Esse conjunto de necessidades pode variar de um local para outro, de uma época para outra e de uma conjuntura social para outra, mas alguns elementos são mais ou menos constantes. A satisfação dessas necessidades consensuais constitui-se quase em um direito que todo ser humano tem de exercer.

Parte dessas necessidades básicas são tão consensuais que os direitos que as pessoas têm de satisfazê-las se constituem em direitos que foram formalizados juridicamente, e embora não haja garantias de que serão mesmo satisfeitas, ao menos os direitos constituem um patamar mínimo que podemos usar para avaliar se determinado indivíduo ou grupo social usufrui de razoável qualidade de vida ou não. Cito a Declaração Universal dos Direitos Humanos apenas como um exemplo elementar deste consenso.

Mas, necessidades são potencialmente ilimitadas.

Uma pessoa pode julgar que está satisfeita, enquanto outra, na mesma situação, pode julgar que não está satisfeita. Há, assim, um conjunto de requisitos gerais socialmente aceitos para se definir um mínimo de qualidade de vida, mas não há um máximo. As pessoas podem desejar o infinito, se quiserem. Não terão, evidentemente, garantia alguma de que conseguirão o que desejam, mas isto não importa.

Além do mais, assim como o ordenamento social estabelece um mínimo de direitos para se viver dignamente, estabelece também freios que limitam as pessoas com ambições desenfreadas, que podem tentar de todos os meios possíveis para satisfazer necessidades pessoais questionáveis socialmente, criando assim um risco para o grupo que não interessa aos seus membros correr. Daí que pode-se desejar torneiras de ouro nos banheiros de casa, mas não se pode vender cocaína para conseguir o dinheiro para isso. Ambições são bem vindas, mas há regras numerosas que limitam essas ambições, sob pena de vivermos em um mundo atroz e perigoso a todos.

Na verdade, ainda que haja muita gente vivendo no limiar inferior da escala de bem-estar social, nem por isso se carece de ambição, e nem por isso se tem pouca gente tentando os caminhos mais reprováveis para se satisfazer necessidades que na verdade não são nem necessidades, nem sequer desejos, mas caprichos mesquinhos e perniciosos. É possível mesmo que a causa dessa ambição desenfreada seja a falta de clareza na classificação das milhares de necessidades humanas não atendidas que as pessoas intuem que têm, mas não sabem identificar ou classificar como requer o bom senso. Daí que o mais humilde dos famintos deseja antes a torneira de ouro e a persegue com mais sofreguidão do que deveria, quando na verdade com isso negligencia a própria fome elementar, como se fosse possível saciar a fome com o ouro da torneira.

Milhões não percebem haver uma lógica em nossas necessidades, mas alguns perceberam essa lógica e receberam o devido crédito por isso. 

Como um estudioso da ciência da Administração, tive contato com algo chamado Teoria das Necessidades. O maior nome historicamente reconhecido como sendo o pioneiro na abordagem do tema foi o psicólogo americano Abraham Maslow. De uma maneira simples, Maslow disse que as necessidades humanas podem ser analisadas, organizadas e hierarquizadas em forma de uma pirâmide, tendo as necessidades mais elementares, tais como as necessidades fisiológicas, como por exemplo, alimentar-se, vestir-se, abrigar-se, procriar, fazendo parte da base da pirâmide. Em degraus acima, temos necessidades de segurança, aceitação social, autoestima, reconhecimento, auto realização, etc. Maslow teorizou sobre a possibilidade de que as pessoas tenderiam antes a satisfazer necessidades na base da pirâmide, para depois irem buscando satisfazer necessidades em níveis mais elevados ao longo do tempo.

As observações de Maslow não são necessariamente aceitas por todos os pensadores do assunto, mas seu pioneirismo e simplicidade ajudou as pessoas a perceber que há conjuntos diferentes de necessidades humanas, e esta percepção é útil quando se busca responder a pergunta que fiz acima. O que é estar bem? Sob o ponto de vista psicológico, em conjunto com o conceito de classes hierarquizadas de necessidades, uma pessoa pode julgar-se como vivendo uma vida tão boa quando a sua atual capacidade de suprir as diversas necessidades humanas que compõem a pirâmide proposta por Maslow. Por exemplo: um indivíduo pode sentir-se péssimo por não ter dinheiro para satisfazer as falsas necessidades impostas pelo marketing televisivo, que impõe um modelo de vida idealizado irrealizável mesmo pelo mais rico dos homens. Essa sensação de insatisfação proporcionada pelo marketing, no entanto, esvai-se quando se olha a pirâmide de Maslow e se pergunta quais as necessidades não satisfeitas. Nesta pirâmide, não há espaço para falsas necessidades, tais como carros do último modelo ou uma família jovem, linda e saudável que toma o café da manhã todos os dias com os filhos sorridentes comendo cereais matinais e sucos feitos com as mais modernas ferramentas elétricas que uma cozinha pode ter. Na pirâmide, somos forçados a pensar em nossas necessidades fisiológicas não atendidas. Não se pergunta se temos cereais matinais, mas se não passamos fome. A torradeira só entra nos degraus da pirâmide muito indiretamente, e só passa a ser algo digno de atenção quando a maioria das necessidades mais abaixo da hierarquia já foram atendidas. O marketing não funciona muito bem para induzir pessoas a consumir coisas supérfluas quando essas pessoas sabem que há uma lista de prioridades em suas necessidades.

Mas não é só a televisão e o marketing moderno que criam falsas necessidades e nos fazem sentir insatisfeitos diante de um mundo de desejos banais não realizáveis. A literatura de autoajuda também tem seu papel neste processo. Se as pessoas não leem, podem estar relativamente imunes a este tipo de influência, mas em geral, o marketing moderno é globalizado, multicultural e multimídia. Uma mensagem pode ser passada por centenas de canais diferentes. Não vamos ao cinema, mas as mensagens dos filmes chegam até nós por meio de outros canais. As pessoas conhecem personagens de ficção mesmo sem verem o filme no qual estes personagens aparecem. Somos bombardeados dia e noite, em todos os lugares, de todas as maneiras, pelas mensagens de marketing que tentam nos fazer comprar algo de que não precisamos, e para o qual não temos dinheiro. Assim, é difícil uma pessoa moderna e normal não se sentir intimamente insatisfeita.

A insatisfação fabricada é um fenômeno relativamente novo. Tem pouco mais de 50 anos.

Mas, a maioria das pessoas com menos de 50 anos está sujeita a este tipo de influência. Daí que é difícil a elas perceber que a insatisfação não decorre de necessidades legítimas, mas de fantasias fabricadas em estúdios de televisão. Como medir a satisfação íntima, psicológica, separando o joio pré-fabricado, e o trigo de nossas necessidades legítimas?

Que parâmetro psicológico usar?

Aí temos um problema que não é de medição de um fator humano com base em evidências externas, tal como faz a Economia e a Geografia, ou a Sociologia. Eu não tinha a resposta a esta questão na época em que a formulei. Eu sequer tinha uma ideia clara de que em nossa satisfação ou insatisfação há dois componentes, sendo um observável e relativo à comparação entre nós e nossos semelhantes, e um íntimo e de difícil observação e mensuração, que é nossa própria percepção psicológica, uma mescla de necessidades reais e artificiais que são difíceis de ser separadas e hierarquizadas.

O que eu certamente pude perceber é que nossa percepção pessoal é sempre distorcida, e que precisamos de uma régua para poder medir nossa situação real, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista psicológico. Daí que fiz a quadragésima sétima pergunta, a qual tratarei no próximo post.

Por agora, basta que saibamos que estar bem é um conceito movediço e impreciso, e que se quisermos discutir melhor o assunto, entendê-lo de maneira adequada, é preciso que o vejamos com algum grau de objetividade.

Passemos então para o próximo post, onde trato desta questão, e por fim, da última pergunta da série, que tanto me fez pensar ao longo dos anos.

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