O universo surgiu em algum momento, reza a moderna ciência. Logo, ele tem uma história, ainda que feita de estranhas partículas e raios, forças e feixes ininteligíveis para humanos normais.
E depois se fez a Terra, também em algum momento posterior. E eu creio nisso, até prova segura em contrário. E a criação da Terra é uma bela história.
Depois, as forças da Terra geraram a vida. É o que diz as testemunhas químicas e físicas, e isso parece bem, a meu ver. Também a vida tem a sua história, que é própria dela.
Os animais surgiram e evoluíram, desenvolvendo coluna, sangue, ossos, patas, e por fim, após muitas transformações e perigos, caminhou sobre duas patas. Também os animais podem ter seu passado traçado nas pedras, e uma história bela pode ser lida nas frinchas das ossadas petrificadas. Eu creio que é também uma bela história, longa e cheia de rodeios incríveis.
Os homens então surgiram. Fizeram uso de seus cérebros, caminharam sobre as duas pernas, e fizeram o fogo. Caminharam coletando e caçando, procriando e matando, morrendo e resistindo, no calor e no frio. Também os homens possuem uma longa história, e é vasta e rica, e posso crer que ainda não contaram tantas outras melhor.
Os humanos modernos conquistaram o mundo. Caminhando, chegaram a todos os pontos do globo, e se espalharam em todos os rumos, e adquiriram todas as feições e traços, todas as cores e características, e pululam como pulgas em um trapo velho.
Eu sou uma dessas pulgas.
Meus antepassados vieram de lugares diferentes, com interesses diferentes, e seguiram suas vidas movidos pelas pressões de seus tempos.
Eles não contavam comigo, nem me planejaram, nem perderam tempo pensando em se um dia em um futuro remoto alguém como eu poderia existir.
A despeito de tudo, eu existo. E eu tenho também uma história.
Do surgimento do cosmo no Big Bang até os dias de hoje, há a história geral, que relata as coisas do mundo sem minha presença, isto é, essa história me pertence, mas meu nome não está incluso nela.
Eu, a despeito de tudo, faço parte da história. Apenas a história é que não pode se dar ao luxo de me incluir nela, porque, por mais que eu faça parte dela, não sou nada especial a ponto de merecer ser citado. Sou pequeno demais para caber numa história tão grandiosa.
Mas eu estou lá. Faço parte dessa grande sinfonia cósmica.
Cabe a mim contar a minha história.
Minha história, até onde sou capaz de rastrear, começa, sim, no Big Bang, e termina, sim, no momento presente, mas até ai, não posso dizer que com isso me diferencio dos trilhões de outros seres que nasceram e morreram ou ainda vivem nos dias de hoje.
Em que sou diferente?
De que maneira, ou por quais fatos minha história difere da de todos os outros?
Do Big Bang até o surgimento do homem, compartilho com os demais humanos a mesma história. Então, por bilhões de anos nunca tive nada de especial que me diferenciasse do resto do universo. Eu não existia ainda, mas nem por isso eu não estava em condições de existir. Afinal, sou um homem, e um homem sempre descende de outro homem, e em algum momento algum homem passou a existir. Ora, eu poderia ter sido o primeiro dos homens.
Mas não fui, e nem o segundo. E poderia ter sido qualquer um dos seres humanos que já existiram nesse planeta desde que o homem existe como homem.
Mas não.
Eu vim a existir no dia em que nasci.
Isso é um mistério.
E eu vim não como fruto de qualquer par de seres humanos, de qualquer pai e mãe. Eu vim como fruto de um pai e uma mãe bem definidos. Eu nasci em uma época em que podemos registrar a sequência de nascimentos e mortes. Eu não sou o único humano que nasceu do mesmo casal, mas sou decididamente filho de um casal específico.
Mas meus pais também são filhos de pais específicos. E meus avós também.
Então, quando eu perco o fio da linha que me liga ao primeiro dos casais, ao Adão e Eva primordiais?
Eu perco a linha no momento em que não tenho nenhum nome a identificar alguém em especial como um ser humano do qual descendi seguramente.
Eu tenho milhares de ancestrais desconhecidos, isso é certo. Mas nada sei deles. Então, como posso contar suas histórias, se não sei quem foram?
Posso, sim, contar algumas histórias antigas, mas para que?
Para que fique registrado.
É possível e provável que haja algum nome em algum livro, de alguém que já existiu, com uma data de nascimento e de morte. Esse nome nada me diz, e, portanto, não sei sua história. Se foi herói ou bandido, famoso ou desconhecido em sua época, pouco importa. Seus méritos e deméritos são dele. Não significam nada, a menos que eu tenha algum parentesco com ele. Dirá mais se for meu antepassado. Sua vida, se conhecida, ajudará a me fazer entender um pouco desse mistério que me atormenta, e do qual não consigo me despregar.
Quem eu sou se explica pelo modo como vim ao mundo. Meu eu está ramificado nas brumas do passado. Nunca terei as respostas completas que satisfaçam minha curiosidade, mas posso ter algum conforto em saber que sou quem sou em parte por minha culpa e meu mérito, mas também sou quem sou por culpa da cadeia das coisas, das causa infinitas, que se perdem nas brumas do passado, influências de atos e decisões de pessoas que não conheci, e que não me conheceram, e que ainda assim estão ligadas a mim, embora eu não estivesse ligado a elas enquanto ainda eram vivas.
Eu estou enraizado nas brumas do passado e suas lendas.
Isso é história. Isso merece ser registrado.
Rumo às brumas, então. Rumo a algum lugar do tempo, por volta de 1820, que é o momento no qual mais profundamente posso retroceder, sem que passe da lenda à invenção e à ficção desavergonhada e pura.
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